quarta-feira, 26 de dezembro de 2007

Um dia especial



Não te quero num cavalo branco galopante.
Não te quero num grande momento de escolha entre viver ou morrer.
Quero-te à medida que me reconheço em ti.
Não como alma refletida, mas como a alma que se expande sem querer.
Quero-te todos os dias, nas intermináveis horas mortas entre os segundos de delicadeza.
Quero-te ao meu lado no momento em que durmo; no momento em que a consciência exaurida descansa a pena sobre o papel, rabiscando retas sem propósito.
Não quero todos os seus dias de festa, quero apenas este:
Pois sei que, como todos os outros, este não será menos banal e menos significativo.
Quero-te enquanto assobias a canção que ficará gravada em minha memória.
Quero-te.

domingo, 23 de dezembro de 2007

Era uma sombra larga

As palavras são corpos

Que vivem, dançam, entrelaçam-se à beira de um abismo.


As palavras são corpos em dúvida,

Esbarrando na multidão, roubando olhares.


Os corpos e as palavras têm a mesma substância:





Lembranças coletivas num desesperado movimento desbotante.


As palavras se degeneram,

Morrem aos poucos.

Compõem o seu último abraço no limite do agora.

Depois, descansam em túmulos para serem visitadas e resignificadas.


A morte da palavra, como ela é necessária!

Poderia eu segurá-la na carência de sua vida, em sua eterna indefinição?

Infelizmente, quando minha consciência lança sua mão para agarrá-la, é tarde demais.


Num suspiro seco, a palavra cai sobre seu próprio corpo fatigado, desabando em sua própria sombra larga.

terça-feira, 18 de dezembro de 2007

Terra - terra

Se, como acreditavam os antigos, a Terra fosse quadrada;

Se, ao chegarmos no fim do mundo, deparássemos-nos com um abismo;

Talvez nunca te teria encontrado.

Nunca desconfiaria que o vento que sopra o meu catavento é humano.

Pensaria que ele vem de algum lugar frio e distante do cosmos.




Se a Terra fosse quadrada, seria Terra - toda imponente - e não terra vermelha, com cheiro e um minúsculo t.




Como a terra é redonda, ao rodar meu catavento, procurei em suas curvas o responsável pela brisa.

Encontrei-te ali, dobrando a esquina do mundo,



Soprando despretensiosas, distraídas e tímidas bolinhas de gude, que se transformavam em vento quando, ao cruzar a rua, deparavam-se com latitudes estranhas:




latitudes infinitas.

terça-feira, 11 de dezembro de 2007

You gotta be crazy, gotta have a real need...

Com a chegada das certezas e a ida dos fantasmas, sobra-me um vazio.

Minha vida é fragmentada e encapsulada, como as pílulas que me são intrínsecas e os textos que me constituem.

Eles me dão de presente a sensação de continuidade.

Luto contra o ascetismo olhando complacente para os quadros desalinhados em meu quarto.

Procuro em versos bobos uma espécie de simplicidade.

"Maria, sua pele bonita me faz suspirar um passado que nem é meu."

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Com a chegada das certezas e a ida dos fantasmas, sobra-me um vazio.

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Com a chegada das certezas e a ida dos fantasmas, sobra-me um vazio.

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Com a chegada das certezas e a ida dos fantasmas, sobra-me um vazio.

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Com a chegada das certezas e a ida dos fantasmas, sobra-me um vazio.

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Com a chegada das certezas e a ida dos fantasmas, sobra-me um vazio.

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Com a chegada das certezas e a ida dos fantasmas, sobra-me um vazio.

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Como um disco de vinil, vejo minha alma girar até um centro inatingível. O ruído da agulha tocando as imperfeições é delicioso. Os seus tons graves, saídos de caixas de madeiras impregnadas de eternidade, preenchem um cômodo inteiro. Bass, treble, mono, phone, balance, on-off, loudness, mode, filter. Ao contrário do que pensavam os pessimistas modernos, a miscelânea de botões não fragmenta a vida. Tampouco tais botões são peças de um mosaico que, vistos de longe, compõem uma pretensa unidade. Os botões são variáveis da consciência: eles estão organicamente ligados ao som que se reproduz. E ao contrário do que pensam os pessimistas pós-modernos, não há nacionalidade ou dominação na guitarra dobrada de David Gilmour. O âmbar que envolve a sala não tem lugar e tempo definidos. Como minha alma, o Animals flutua e envolve completamente o meu corpo deitado no chão. Fitando o teto, meu ser, em seus tons graves e em suas imperfeições, preenche o quarto e gira num ponto de equilíbrio desconhecido por todos os homens, mas, ao mesmo tempo, sentido por todos eles. Com a chegada dos fantasmas e a ida das certezas, sobra-me um suspiro substancial.

domingo, 9 de dezembro de 2007

A sala vazia

Me ocorreu que cada pensamento, um pouco antes de dormirmos, é uma tentativa desesperada de nos salvarmos da queda em um abismo.

Como um buraco negro, o sono engole o tempo.
Sem ele, nossa consciência deixa de existir.

Os pensamentos, por sua vez, nada podem fazer. Quando o tempo é completamente consumido, um âmbar os envolve e os rebaixa a um nível não alcançável pela consciência.

Ela por fim se resigna.

Enquanto eles se entretêm sozinhos num jogo viciado e doentio, como uma TV que é assistida por uma sala vazia.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

Choque pós-moderno

O elevador pára no terceiro andar. Entram uma mulher com um cachorro no colo e um garotinho agarrada à sua saia.

"Bom dia."

"Bom dia"

Terceiro, quarto, quinto, sexto, sétimo, oitavo, nono, décimo, décimo primeiro, décimo segundo.

Quando a porta se abriu, meu elogio aos olhos da moça; minhas elucubrações sobre a cidade e os cachorros; minha acentuada ausência; meu comentário sobre o tempo; meu murmúrio de uma canção; meus afazeres de todos os dias; minhas possibilidades que se abriam naquele instante; meu futuro como pai e como marido; minha velhice; meu lirismo...

Ajudo a segurar a porta do elevador.

"Tenha um bom dia."

"Igualmente."

domingo, 25 de novembro de 2007

Morre a Tia Doca

Morreu a Tia Doca.


Parte das casas de cima e de baixo foram-se também.

A subida que as separa comoveu-se com a perda;
Por um momento, ela quis curvar-se para que as duas casas se encontrassem num abraço.


Morreu a Tia Doca.


Desfizeram-se os nós de tantas lembranças e vidas cruzadas - perdidas em uma cidade esquecida.


Paradoxalmente, para a surpresa dos cientistas, os quintais do mundo estavam ali: entre mangueiras da memória, cachorros atemporais e jaboticabas pisadas no chão.



Já sei por que morreu a Tia Doca.

O tempo passava por Cajuru e resolveu parar.
Foi até a praça, recusou o sorvete mas aceitou o estalinho. Subiu no coreto e olhou para a Igreja reformada: olhou as crianças e suas mães, os bêbados e os carros estacionados. Viu pessoas comprando pão, olhando revistas, jogando dominó e conversando; todos eles tão alheios à sua presença.
Pensou... "Vou passar na Tia Doca."

Lá o tempo foi bem recebido: ofereceram-lhe bombons e quibe. "Não, obrigado... Acabei de almoçar, Tia Doca!".


"Você é filho de quem, bem?" ela disse.
"Ora, sou seu filho, Doca..."


O tempo então pegou-a pela mão e ajudou-a a levantar de sua cadeira. Cuidadosamente desligou a TV e caminhou com ela em direção à porta de entrada.
Os retratos na parede olhavam condescendentes: todos eles tinham uma lembrança terna da Tia Doca.
O piso de madeira rangia uma sinfonia de despedida aos passos lentos e inseguros do filho e da mãe... Os sons de tantas tardes e noites condensavam-se naquele réquiem calmo e consentido.



Assim viveu a Tia Doca.

quarta-feira, 21 de novembro de 2007

De repente... bonança.

O amor subverte lugares e espaços...



... é calmaria em ação.



O amor age mergulhando-se em piruetas fluidas: como as formas de uma nuvem, encontra a sua razão-de-ser no momento em que existe.
O amor se esconde nos cantos mais macios da memória, capturando as faíscas de vivência - antes tão dissonantes - e enchendo-as de cores e contornos uníssonos.

O amor, com um sorriso tímido, passa delicadamente a sua mão envelhecida sobre os ansiosos cabelos daqueles que tentam defini-lo.




O amor... calmo... vai e volta...


... como o vento suave de um amanhecer na praia.




O amor é esta manhã que nunca tem fim.

domingo, 11 de novembro de 2007

Dois pés no freio




Um acorde conhecido tocou na minha lembrança. Os tempos haviam mudado, mas era a mesma época do ano; logo, aromas e luminosidades semelhantes.

A pura ilusão da familiaridade. Como se enxergasse uma pintura de um povo distante, aquele momento - aquele acorde - deixava o seu significado mais profundo escapar entre os dedos toda vez que eu arriscava abrir a boca em busca de algo a dizer.

O olhar, no fundo, é sempre assim: coextenso ao momento.

Pura ilusão.

quinta-feira, 8 de novembro de 2007

0800

Minha consciência parece estar em tudo sem estar em nada.

Meus sonhos misturam, ao som de um Mozart soturno, habitus e campo sem o menor constrangimento: Bourdieu em tudo, até na calda de chocolate que cobre o sorvete de flocos.

Internalizei a chatice antropológica e me atrevo a analisar esquizofrenicamente a minha própria composição.

Cansaço, eu sei. Mas para que explicações simples?

Estafa do mundo e das pessoas que andam sobre ele gritando, discursando, pagando, metaforizando, sexualizando, deserotizando, musicando, fofocando, provando, desessencializando, essencializando, procurando, acalmando e, principalmente, ironizando.

Chega de gerúndios rodopiantes!


'Não quero mais saber do lirismo que não seja libertação!"

Até você, Manuel?

Eu não quero mais é saber de posts com moral da história.

Portanto eu deixo a você, leitor caridoso desse blog, a tarefa de ligar gratuitamente para o 0800 e me dizer qual é a razão de ser deste texto que lhes apresento.

segunda-feira, 5 de novembro de 2007

Sobre o aquecimento global






'Again last night I had that strange dream
Where everything was exactly how it seemed.
No concerns about the world getting warmer,
People thought they were just being rewarded
For treating others as they like to be treated;
For obeying stop signs and curing diseases;
For mailing letters with the address of the sender:
Now we can swim any day in november...'

sexta-feira, 2 de novembro de 2007

O corpo





O corpo, tal como é, resiste às mais violentas tormentas do tempo,

Durante a tempestade, ele vai e vem: sentado num balanço, o corpo freia pra parar.




O corpo carrega história: na face e no coração, as marcas de séculos; no bolso da mão direita, o eterno devir.



O corpo não se reconhece como tal,

Ele assovia uma dor, esboça um sorriso. Suspira mil ais, pensativo:

'Quando é que isso acaba?'


Nunca.


O corpo anseia sempre a contradição.

terça-feira, 30 de outubro de 2007

Vamos?


Um menino andava sozinho pela cidade natal. Ele achava que, cavucando os não-lugares do espaço e da memória, acharia o que há de lirismo nas coisas.

Uma menina andava sozinha pela cidade não-tão-estranha-assim. Ela achava que, sublimando a realidade objetiva e suas contradições, encontraria um conforto para sua alma inquieta e para o seu grande coração.

Quando se encontraram, ela disse: "Me empresta as tuas lembranças mais ternas da cidade para que eu possa me encontrar dentro dela?"

Ele respondeu: "Claro, mas cuidado com os não-lugares!"

"Não-lugar? O que é isso?"

"São lugares sobre os quais memória alguma imprimiu o contorno de um lápis e as cores de aquarelas."

"Hum... Impossível não cruzar com eles por aí..."

"Verdade, mas minha intenção não é bem desviar deles: quero sim mergulhar nesses espaços em busca de cores escondidas. Quero livrá-los de tanto cinza!"

"Ora, mas para quê? Aceita o cinza como uma transição entre cores..."

Os olhos do menino se arregalaram e um novo mundo se descobriu para ele. Quando abria a boca para dizer algo, a menina convidou:

"Vamos velejar pela cidade? Você me mostra as coisas bonitas e eu te digo que elas são eternas!"

Na plenitude do momento, ele respondeu:


"Sim, vamos!".

domingo, 28 de outubro de 2007

Pílula

(Sighs)

Ah...

Ploc: glub, glub.

Gluuup.

Ah...

(Sighs)

sexta-feira, 26 de outubro de 2007

Terças menores

[You may tire of me as our December sun is setting because I'm not who I used to be. No longer easy on the eyes, but these wrinkles masterfully disguise the youthful boy below.]

Ela sabia claramente que não estava em um sonho porque, nos sonhos, os sentimentos não são divididos. Pode haver dúvida em um sonho, mas ela é em si o sentimento como um todo.

No entanto o cenário colaborava: mesas vazias, folhas de meia-estação caídas no chão, um fim de tarde pouco exemplar, friozinho que anunciava garoa no dia seguinte. Tudo parecia um sonho.

Tudo parecia um sonho, menos a angústia que ela sentia - que é típica daqueles que vivem. Uma angústia de estrutura cíclica, que crescia de dentro do mais fundo Eu e chegava a se materializar em forma de soluço. Uma angústia que irradiava fragmentações: a angústia era em si a repartição da alma, que se olhava no espelho e sentia a separação entre o seu Ser real e a sua imagem refletida.

[But now he lives inside someone he does not recognize when he catches his reflection on accident.]

Essa angústia era com certeza um acorde: o desarranjo de uma terça menor que, no velho piano da sala de estar, tocava sempre a mesma tecla, formando uma melodia repetitiva... e linda. A cada nota, o significado crescia até irromper num acorde; numa lágrima.

Ela sabia que nada havia mudado: que continuava a ser aquela garota que sonhava em se libertar do chão para fundir seu corpo aos sentimentos mais puros que havia dentro dela. Seu coração continuava a ser uma janela, apenas uma passagem para o mundo lá fora.

[On the back of a motor bike with your arms outstretched, trying to take flight, leaving everything behind. But, even at our swiftest speed, we couldn't break from the concrete in the city where we still resigned.]

Mal sabia ela que não se compõem canções durante o sono.

Mal sabia ela que almas sem projeção no espelho não criam terças menores.

Mal sabia ela que sentimos uma angústia que nos quebra em pedaços porque estamos arrancando de nós mesmos a melodia a ser escrita.





Ela não sabe que seu coração percebe tal processo de composição. Ele sim tem consciência de que é essa melodia que nos puxa com uma cordinha, fazendo-nos sentir que, enfim, estamos deixando o chão.

[Cause now we say goodnight from our own separate sides, like brothers on a hotel bed.]

segunda-feira, 22 de outubro de 2007

Vida-Morte-Vida




Com calma, a tarde anunciava "é o meu fim". Eu tinha, então, poucos minutos para alçar aos céus a pipa que havia preparado durante todo o dia. O sol se escondia no oeste e eu corria para o leste, soltando a linha aos poucos; aquela coisa tão frágil, feita de papel e varetas, gradativamente ganhava sua autonomia e, à medida que subia, os tons de laranja colocavam aura na minha criação.
A sensação era exatamente esta: com a pipa lá em cima, eu sentia como se o mundo reinvidicasse algo que lhe pertencia. O meu instinto era de dar cada vez mais linha, postergando a inevitável tensão. A linha, enfim, chegou ao fim, explicitando um conflito que lhe era intrínseco. Lá em cima, a pipa parecia ignorar aquilo que a segurava e toda essa querela que a envolvia: ganhava cores cada vez mais inusitadas com o recolher do sol.
Enfim, ficou escuro. Olhava para a pipa, mas tinha dificuldade em vê-la. Sentia que ela ainda estava lá, afinal a linha denunciava a sua vontade de ir embora. Ao procurá-la novamente, sentia que ela me dizia: "Deixe-me ir, o mundo agora me deu algo que você não consegue mais entender...". Ela tinha razão; ela ainda tinha uma aura, mas esta já estava além da minha percepção.
Foi nesse momento que compreendi que toda tensão é um anseio por libertação. E toda libertação anseia por cores que não conseguimos ver.
Carinhosamente soltei a linha e senti a pipa escapar de mim e ir de encontro ao mundo.

quinta-feira, 18 de outubro de 2007

quarta-feira, 17 de outubro de 2007

Continuação

Como resultado do meu último post, surgiram muitas respostas. Selecionei aqui as que mais contribuem para a continuidade da discussão e resolvi postá-las para dar mais visibilidade à discussão assim como as respostas dos outros.

PS: Faustina, ainda aguardo a sua resposta!

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Andréa

Não sei se entendi tudo, aliás, tenho quase certeza que não (heheh)! Mas alguma coisa, sim, e, do que pude entender, achei teu texto bom. E bem, corrija-me se no que eu escrevo há algo que seja fruto de minha má compreensão.

Bom, tenho a impressão que há um acordo sobre a natureza do que se denomina “motor da história”, quero dizer, suponho que todos concordam ou concordaram que o que move a história não é alheio aos seres humanos, que a história é por excelência um produto das relações sociais, nas quais um componente subjetivo existe, necessária e essencialmente. Com isso quero dizer que, sim, penso que seja certo dizer que relações sociais não são concretas, no sentido que elas não existem como algo material ou materialmente perceptível. É evidente que as relações sociais não têm existência física e que, sendo relações, pressupõem mais de uma pessoa para que aconteçam num determinado tempo e espaço. Do que se diria, então, por decorrência lógica, as relações são um acontecimento do instante. Ok.

Mas há umas coisas que não entendo ou, pelo menos, não teria tanta certeza em afirmar. A primeira, o que se entende por realidade. Porque se “a realidade das coisas se resume ao fato de que suas aparições e suas manifestações não dependem do meu ser; ou seja, sua existência está ligada a uma razão que não depende do meu bel-prazer” - e eu entender, conforme se parece querer dizer, por ‘o que depende do meu ser’ como algo que é subjetivo - então, por decorrência lógica do que foi dito, as relações sociais não existem ou não são reais. Contudo, por mais que eu tente, não consigo achar que só o materialmente existente seja real. Para mim, o fato das relações serem efêmeras não quer dizer que não existiram, que não foram reais enquanto estavam acontecendo. Exemplifico: um professor estabelece um tipo de relação com seus alunos durante uma aula; essa relação, que envolve a subjetividade dos alunos e do professor, ainda que não necessariamente implique o que se chamou de consciência reflexiva, é real, está existindo, enquanto dura a aula. E, se isso é verdade, um tipo de relação existe enquanto for reproduzido, quero dizer, por exemplo, a escravidão não existe porque não acontece mais, ainda que tenha sido real, existente, num determinado espaço e tempo passado. Isso é o que me permitiria dizer que ao longo de toda a história do Brasil colônia e do Brasil Império a escravidão existiu, que esse tipo de relação social era uma realidade.

E, por conseqüência dessa minha forma de ver as relações como realidade, teria mais cautela ao afirmar que “Tal realidade e suas manifestações fenomenológicas têm necessariamente que se conectar de maneira transcendente, senão tais manifestações se fechariam sobre a maneira subjetiva através da qual somos afetados”. Quer dizer, entendo que através das relações que estabelecem entre si os homens compõem parte da realidade, transformando-a ou reproduzindo-a. Noutras palavras, ainda que a realidade do mundo físico exista de forma independente aos seres humanos, estes podem atuar sobre esse mundo físico, criando uma outra realidade pelas relações que estabelecem com esse mundo físico e, não apenas assim, mas também pelas relações que estabelecem entre si. Caso contrário, a realidade e a história seriam coisas completamente separadas uma da outra. Contudo, como entendo, o que move a história não pode ser visto como algo externo a nós exatamente pelo fato de que, estando em relação com o mundo, não só estamos submetidos a ele, mas também interferimos nele.

Por isso, ainda gostaria de considerar mais duas coisas. Uma que se ‘o homem’ pode mesmo, através das suas relações, interferir sobre a realidade - quer dizer, se a história é ‘dos seres humanos-, isso significa que, mesmo que as relações sejam um acontecimento efêmero, elas implicam pressupostos e conseqüências que as ligam a outros momentos do tempo e a outros espaços diferentes daqueles nos quais aconteceram, independentemente da consciência ou da memória humana, seja dos que participam daquelas relações ou não. Com isso não quero dizer que as narrativas e seus significados não sejam um produto da nossa consciência reflexiva, mas que entendo que, num momento ainda anterior a essa consciência, os instantes interconectam-se uns aos outros através dos pressupostos e conseqüências ou efeitos das relações, pois mesmo que elas tenham, necessária e essencialmente, um componente subjetivo, isso não implica uma plena consciência do seu sujeito ou do seu observador sobre a mesma. Eu chamaria isso de processo histórico. Um ex tosco: uma firma contrata trabalhadores para produção de carros (o que significa uma relação de trabalho) de um novo modelo com nova tecnologia de combustível (significa uma nova relação com o meio físico) na expectativa de vencer o concorrente externo (significa uma relação de concorrência com previsão sobre o futuro) e aumentar seus lucros (significa uma relação de apropriação), no que está pressuposto a existência de um mercado de carros (significa relação de compra e venda e de competição entre as firmas) e o uso deste tipo de transporte (tipo de consumo, status etc); essa decisão trará conseqüências ao mercado de carros e de trabalho e até pode ser frustrada por n motivos não previstos, a firma ser adquirida pela concorrente externa (significa uma mudança na relação de concorrência) ou as compras de carros aumentarem; e tudo isso independente do que os envolvidos pensem sobre os efeitos ecológicos e econômicos do transporte por meio do carro, o seu significado político etc. Enfim, a idéia é que o momento de cada relação interconecta-se com os outros por meios das próprias relações, seus efeitos, conseqüências e pressupostos; e que por essas relações, que muitas vezes têm produtos concretos (os carros produzidos, os contratos efetuados e refeitos etc) se interfere na realidade, gerando a história.

Por fim, acho que uma diferenciação entre as relações pessoais e sociais também poderia nos ajudar a pensar. Não acho que essa separação exista de maneira evidente. Ao contrário, todas as relações da nossa vida são, simultaneamente, pessoais e sociais, mas em alguns momentos convém destacar mais um lado que outro. Digo isso por um motivo muito simples: as relações sociais têm uma duração longa, além do seu tempo de duração efetiva, que não está só na memória daqueles que a vivenciaram, mas materializada nas diversas formas de organização das relações sociais. Por ex, as leis que servem para tentar coagir os indivíduos a relacionarem-se de tal ou qual forma, a moral religiosa ou laica que constrange as relações que fogem ao padrão estabelecido etc. Essa materialização das constrições às relações sociais nem sempre existe e nem é necessária para caracterizar uma relação social, mas acredito que sirva para indicar quanto uma certa relação é importante numa dada sociedade, portanto, como se encadeiam às outras sociais, construindo a história, e por que há relações tão mais consolidadas e difíceis de se alterar que outras.

Provocação:
O muro de Berlim caiu, não existe mais. Mas a venda do trabalho, a acumulação do capital, a concorrência entre as grandes empresas multinacionais, as guerras entre as nações para exploração dos recursos alheios, isso tudo continua, ainda existe. Moral dessa história: Há certas relações sociais por ai muito mais difíceis de transpor que muitas paredes.

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Felipe

Andréa, concordo com quase tudo que você disse. Vou apenas responder a alguns pontos do seu texto.

A primeira, o que se entende por realidade. Porque se “a realidade das coisas se resume ao fato de que suas aparições e suas manifestações não dependem do meu ser; ou seja, sua existência está ligada a uma razão que não depende do meu bel-prazer” - e eu entender, conforme se parece querer dizer, por ‘o que depende do meu ser’ como algo que é subjetivo - então, por decorrência lógica do que foi dito, as relações sociais não existem ou não são reais.

Primeiramente, a minha intenção com esse trecho que você destacou era a de mostrar que a a natureza das relações sociais é completamente diferente da natureza da 'realidade empírica'. Portanto é insustentável uma Ciência Social atribuir a si o estatuto de ciência do concreto. É claro que as relações sociais existem e são reais, seria um absurdo dizer que não. Aliás, como bem disse o André, eu poderia ter maneirado na hora de utilizar tantas vezes a palavra 'realidade', porque pode criar um mal-entendido, como de fato aconteceu. O meu esforço em falar dos objetos do mundo como algo 'real' se deu no sentido de evitar tal concepção: se a nossa relação com o mundo é necessariamente uma relação subjetiva, se levarmos isso às ultimas conseqüências, talvez estejamos vivendo uma grande ilusão na qual as coisas à nossa volta não passam de devaneios da nossa mente. Foi para refutar isso que eu disse que as coisas existem independentemente da nossa vontade; tais coisas têm razões-de-ser, ou essências, que independem de nós. Essa razão de ser é em si aquela dupla face que eu comentei: o infinito no finito, ou seja, infinitas manifestações fenomenológicas coextensas a uma razão-de-ser finita. Entende?
Agora, dizer isso não significa dizer que o mundo está imune ao homem. Nós interferimos nele tanto simbolicamente como concretamente.

Para mim, o fato das relações serem efêmeras não quer dizer que não existiram, que não foram reais enquanto estavam acontecendo.

Concordo plenamente. Aliás, eu acredito que o que existe de mais real para nós são essas coisas que se arrastam pelas bordas do instante. As relações sociais são extremamente reais no sentido de que elas podem desaparecer no limite do momento, mas elas têm um grande peso na maneira como veremos o mundo posteriormente.

Uma que se ‘o homem’ pode mesmo, através das suas relações, interferir sobre a realidade - quer dizer, se a história é ‘dos seres humanos-, isso significa que, mesmo que as relações sejam um acontecimento efêmero, elas implicam pressupostos e conseqüências que as ligam a outros momentos do tempo e a outros espaços diferentes daqueles nos quais aconteceram, independentemente da consciência ou da memória humana, seja dos que participam daquelas relações ou não. Com isso não quero dizer que as narrativas e seus significados não sejam um produto da nossa consciência reflexiva, mas que entendo que, num momento ainda anterior a essa consciência, os instantes interconectam-se uns aos outros através dos pressupostos e conseqüências ou efeitos das relações, pois mesmo que elas tenham, necessária e essencialmente, um componente subjetivo, isso não implica uma plena consciência do seu sujeito ou do seu observador sobre a mesma.

Nenhum homem é uma ilha. Por isso não gosto do conceito de indivíduo. Conectamo-nos a outros espaços e a outros tempos históricos sim, mas não de uma maneira transcendental; o elemento dialético faz com que a resignificação seja constante, ou seja, no momento em que eu olho para o mundo, o olhar que eu lanço para ele é o da tradição. Mas, mais uma vez, tal conexão está dentro de nós: não está em um 'espírito da história'. Por isso não concordo quando você diz que isso não implica em plena consciência do sujeito. Implica sim, afinal toda ação é uma ação crítica (não no sentido analítico, mas no sentido de não olhar neutramente para as coisas). Talvez não percebamos, mas a consciência trabalha incessantemente: como disse o Sartre, não existe consciência sem a consciência de que ela existe.
Mas eu acho que o você quis dizer é que nós talvez não saibamos, mas estamos inseridos em algo maior do que nós mesmos: um processo histórico. Bem, com relação a isso eu tenho muitas ressalvas. Acho que esse 'algo maior' seja também um recurso analítico do qual o pesquisador lança mão. É lógico que em qualquer sociedade há uma rede complexa de relações sobre as quais as ações dos sujeitos têm uma conseqüência; mas elas só têm uma conseqüência porque há pessoas envolvidas nesse processo. Mais uma vez temos que ter o cuidado de não atribuir a um efeito o estatuto de causa.

E, por fim, eu não acredito nessa separação entre relações sociais e relações pessoais. Podemos até separá-las na hora de uma análise, mas elas são a mesma coisa: e, no fundo, é isso que é bonito nas Ciências Sociais.

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Bárbara

Bier!
Fiquei incomodadíssima com esse texto! Não podia perder meu posto de chata e deixar de comentar.
Como assim, a história se realiza no momento e as relações sociais se reproduzem no plano das idéias?
Sartre é um defensor feroz do materialismo histórico e do pouco que eu entendo, está longe dele acreditar que não haja nada externo que faça os homens fazer história...
Aí é importante sacar o diálogo filosófico: com quem ele está falando e o que é o projeto existencialista sartriano? é um resgate do marxismo que, na experiência histórica (e aqui, ação não vem separada de construção teórica) separou ser e saber, teoria e prática...
Quando ele fala da consciência, apenas diz que ela é formada pela experiência. E essa não é desinvestida de materialidade (é pura materialidade).
Mas essa é apenas a razão. O problema é a passagem do mundo kantiano para o hegeliano: como resolver o problmea da ação?
Aí é que vem o lance do indivíduo na história e o seu resgate, já que o economicismo o tinha relegado a um milésimo plano. Mas o foco no subjetivismo e a recusa ao objetivismo vem não para instituir um reino de liberdade plena de escolhas.
O lance é que o indivíduo, para Sartre, não reconhece o resultado de sua ação porque ela se dilui no todo: a objetivação da sua subjetividade torna-se alienada. E ele só age com a finalidade de suprir alguma ausência (daí a idéia de projeto). Como todos agem ao mesmo tempo, os projetos individuais entram em choque e foram um todo que age contra o indivíduo e limita a sua ação(estrutura-viva).
No fim das contas, o que quero dizer é que Sartre não nega a materialidade (é ela quem constitui a consciência dos indivíduos, através da experiência); nem a influência de uma exterioridade no 'fazer' história dos indivíduos: se eles têm liberdade de escolha, esta liberdade se dá em um campo de possíveis já dado, porque construído historicamente(mesma idéia do Marx em 18 de brumário); nem a inexistência de relações sociais pautadas por uma materialidade.
Acho preocupante relegar esta última (relações sociais) ao universo das idéias (estou radicalizando seu argumento). Para mim, fica parecendo que você acabou comprando a idéia que Sartre queria negar.
Minha provocação: por que ler o Sartre com a chave do Geertz se o seu instrumental é marxista e Husserliano?

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Felipe

Bárbara, em primeiro lugar seria importante ressaltar que o que eu quis fazer aqui não é um resumo do existencialismo do Sartre. São apenas idéias minhas que, em grande parte, têm sido influenciadas pelas leituras que eu tenho feito. Aliás, eu admito que são leituras limitadas, já que eu nem cheguei a pôr em mãos algo mais denso que Sartre tenha escrito posteriormente ao "Ser e o Nada". De tal forma, não sei como ele faz essa união com o materialismo histórico (que só é feita posteriormente. Como você bem disse, é preciso sacar em que ponto da obra do Sartre eu estou tocando).

Quando ele fala da consciência, apenas diz que ela é formada pela experiência. E essa não é desinvestida de materialidade (é pura materialidade).

Foi exatamente isso que quis dizer! Ela é pura experiência e pura dialética na medida em que toda a sua intenção está voltada em apreender o mundo em seu sentido mais amplo.

O lance é que o indivíduo, para Sartre, não reconhece o resultado de sua ação porque ela se dilui no todo: a objetivação da sua subjetividade torna-se alienada. E ele só age com a finalidade de suprir alguma ausência (daí a idéia de projeto). Como todos agem ao mesmo tempo, os projetos individuais entram em choque e foram um todo que age contra o indivíduo e limita a sua ação(estrutura-viva).
No fim das contas, o que quero dizer é que Sartre não nega a materialidade (é ela quem constitui a consciência dos indivíduos, através da experiência); nem a influência de uma exterioridade no 'fazer' história dos indivíduos: se eles têm liberdade de escolha, esta liberdade se dá em um campo de possíveis já dado, porque construído historicamente(mesma idéia do Marx em 18 de brumário); nem a inexistência de relações sociais pautadas por uma materialidade.

Em nenhum momento eu disse que o espectro de decisões e as liberdades dos sujeitos eram ilimitados. Só quero afirmar que os sujeitos fazem sim escolhas e que há agência no mundo social. Agora, se você diz que Sartre coloca que as relações sociais são pautadas por uma materialidade, eu pediria que você explicitasse o que ele entende por 'materialidade'.

Por fim, não estou relegando as relações sociais ao mundo das idéias. Estou dizendo que as relações sociais em si são efêmeras porque existem apenas no limite do instante (em forma de experiência). No entanto essas experiências sociais constituem a maneira como os homens vêem o mundo e encaram as experiências seguintes, tendo assim, uma textura muito bem definida e cores que não desbotam facilmente. A narrativa histórica, portanto, não deve ser relegada a um 'espírito da história', 'modo de produção' ou a qualquer coisa que seja externa aos sujeitos. Quem constrói as experiências são esses sujeitos, assim como são eles mesmos que dizem qual deve ser a história a ser contada.

A minha briga, na verdade, é contra uma leitura marxista que enxerga nas complexas redes de relações entre os homens o substrato de uma metafísica social. Encaram-se, assim, forças sociais abstratas - que deveriam servir apenas analiticamente - como parte constitutiva deste mundo ideal com estatuto de concreto.

E respondendo à sua provocação: "por que ler o Sartre com a chave do Geertz se o seu instrumental é marxista e Husserliano?"

Ora - provocando novamente - exatamente porque eu não encaro as teorias como religião... hehe

terça-feira, 16 de outubro de 2007

A história do momento

Pensar a relação do homem com o mundo é pensar a história. Mas como devemos entendê-la? Qual é a história que mais se aproxima de uma lógica das coisas do mundo (se é que existe tal lógica)?

A premissa de que nenhum olhar é neutro e de que tudo passa pelo crivo da nossa subjetividade não deixa de ser verdadeira; no entanto, ela nos deixa num beco sem saída à la Matrix. Primeiramente é preciso pensar em o que seria a realidade. A realidade das coisas se resume ao fato de que suas aparições e suas manifestações não dependem do meu ser; ou seja, sua existência está ligada a uma razão que não depende do meu bel-prazer. Tal realidade e suas manifestações fenomenológicas têm necessariamente que se conectar de maneira transcendente, senão tais manifestações se fechariam sobre a maneira subjetiva através da qual somos afetados. Diz Sartre: "Mas se a transcendência do objeto se baseia na necessidade que a aparição tem de sempre se fazer transcender, resulta que um objeto coloca, por princípio como infinita a série de suas aparições. Assim, a aparição, finita, indica-se a si própria em sua finitude, mas, ao mesmo tempo, para ser captada como aparição-do-que-aparece, exige ser ultrapassada até o infinito. Esta nova oposição, a do 'finito e infinito', ou melhor, do 'infinito no finito', substitui o dualismo do ser e do aparecer".

O que significa dizer que há uma nova oposição entre o infinito no finito? Significa que o objeto real tem uma razão de ser finita que é e, assim, se transcende em suas manifestações infinitas, sobre as quais os nossos olhares podem também se multiplicar infinitamente. Isso não significa que o objeto mascara uma dimensão oculta do seu ser ou então revela parte dele. O objeto é enquanto existe. "O existente é fenômeno, quer dizer, designa-se a si como conjunto organizado de qualidades. Designa-se a si mesmo, e não a seu ser. O ser é simplesmente a condição de todo desvelar: é ser-para-desvelar, e não pare ser desvelado". Portanto dizer que estamos presos à nossa subjetividade não significa uma posição claustrofóbica; mas sim que o ser-do-fenômeno é coextenso ao fenômeno, fundamentando-o; este ser, porém, no escapa toda vez que o tentamos apreender.

Agora falta pensar em como se dá essa apreensão. Partindo do pressuposto que a percepção é também um ser transfenomenal concebido como a consciência - transfenomenal porque ela só existe quando é e ultrapassa a sua existência na percepção - é preciso separar bem a consciência e o conhecimento. "A consciência não é um modo particular de conhecimento, chamado sentido interno ou conhecimento de si: é a dimensão de ser transfenomenal do sujeito. (...) Toda consciência é consciência de alguma coisa. Significa que não há consciência que não seja posicionamento de um objeto transcendente, ou, se preferirmos, que a consciência não tem 'conteúdo'."

A consciência tem sim uma forma de ser muito particular: uma forma circular. Porém trata-se de um círculo muito especial, que não se fecha em si mesmo, assemelhando-se mais a um espiral. Na percepção de um objeto, forma-se uma consciência refletida; ao mesmo tempo, cria-se uma consciência de tal consciência: uma consciência reflexiva. A primeira consciência, ou a consciência imediata, não emite julgamentos sobre o que está sendo percebido. Mas só ato de perceber faz com que essa percepção constitua substantivamente a consciência perceptiva. Ou seja, a consciência se encontra num eterno círculo dialético consigo mesmo (é bom lembrar que só dividi a consciência em duas para uma melhor análise). E tal círculo dialético é inseparável do mundo, afinal toda a intenção da consciência está voltada para ele.

A consciência construída e reconstruída a cada momento é a essência da nossa existência: "toda existência consciente existe como consciência de existir". Desta forma, o que temos é uma história de momentos sucessivos sobre os quais a nossa consciência estende a sua percepção. O efeito que se tem é da mesma natureza da reprodução de um filme: a partir de muitos frames, constrói-se uma imagem fluida. No entanto, na nossa relação com o mundo, não existem tais frames - os momentos já são em si fluidos.

E então onde entra a história? O nosso conhecimento ou a nossa memória fazem o papel de ligar causas e efeitos - de construir narrativas e significados- a partir daquilo que a nossa consciência nos fornece. E, em se tratando de relações sociais, a história só se dá na efemeridade do instante. Afinal, uma relação social não tem a mesma natureza de um objeto alheio a nós: ela emerge e logo desaparece no espaço entre duas pessoas. Todavia as relações sociais têm longa duração dentro das nossas mentes. Mais uma vez, dizer que a intersubjetividade entre dois sujeitos se esvai no limite do momento não é adotar uma posição desesperadora na qual "nada é nada"; significa apenas dizer que não podemos atribuir a denominação de motor da história a algo externo a nós. Da mesma forma, é totalmente insustentável tentarmos rotular de concretas relações sociais que são apenas recorrentes: como bem diz Sartre, "A realidade desta taça consiste em que ela está aí e não é o que eu sou". As relações sociais somos nós, logo é imprudente que queiramos vê-las além de nós.


Depois disso tudo, uma pequena provocação:

Uma parede resiste ao momento; relações de classe não.

quarta-feira, 10 de outubro de 2007

Em busca de nuances





Depois de aprender, através de um lindíssimo trabalho do historiador da arte Michael Baxandall, como o contexto histórico de uma dada realidade social - mais especificamente a pintura no quattrocento italiano - promove a construção de uma sensibilidade aos códigos presentes em uma obra de arte, parei pra pensar na minha relação com a arte em geral e, mais especificamente, com a música. É incrível como pensar a arte como fruto de relações sociais e, principalmente, pensar a produção artística como uma aposta do autor na capacidade do seu público de identificar toda a simbologia que envolve sua criação nos abre uma perspectiva de análise maravilhosa.

Só é possível entender a arte em seu contexto. No entanto, ela não é um produto mecânico de uma época: não nos esqueçamos de que há pessoas pintando quadros e outras pessoas olhando para eles e se emocionando com eles. O bom pintor não se acomodará em contar uma história sobre as coisas do mundo de uma maneira fácil: sua arte não é uma caricatura de uma época. Viver na Itália do século XV significa criar certas disposições culurais - ou se preferirem os termos do Bourdieu, um habitus - que permitem acessar o conteúdo profundo de um quadro. A agência do pintor está em perceber que há maneiras de expandir como se pensa e se sente o mundo. Aí está a diferença entre uma arte que instiga e uma arte "mais do mesmo". Ambas se colocam entre o habitus e as demais coisas: no entanto uma se conforma e contar histórias já opacas e gastas enquanto a outra faz um acordo como o seu apreciador - "vamos além?".


Por isso que, quando eu teimo em escrever algo (seja música, seja essas besteirinhas aqui) eu tenho como grande meta ir além. E ir além não significa querer revolucionar tudo, mas sim expandir o sentido daquilo que está sendo trocado através de nuances.

Assim como os italianos renascentistas, eu acredito em nuances.

terça-feira, 9 de outubro de 2007

Estranha Nostalgia

Chegadas e partidas.

A vida é assim,





mas as músicas são mais ou menos as mesmas.








Mucho mungo, sweet thing,
Sweetest little thing i've ever seen.
Must have been a sweet dream,
Brought you here,
Brought you through the sorrow
And the tears.

C'est la, c'est la, c'est la vie,
Sail upon the ocean, sail with me.
Sail into the moment ev'ry day,
Sail it to the sunshine through the haze.



segunda-feira, 8 de outubro de 2007

Uma manhã

Acordo seco.

Meio litro de água ao lado da cama, soro fisiológico para o nariz e afrin 12 horas em caso de entupimento. Relógio semi-quebrado para ter a consciência do tempo, toalha não-mais-encharcada para provocar chuva.

Água, muita água. Café aos montes. Água novamente. TV. TV. TV-Sofá. Água. Computador, escova de dentes, computador e computador.

Preguiça. Água novamente.

Agora não tem mais jeito, 10 horas da manhã... Bourdieu "A gênese social do olho". Preguiça, preguiça... Blog! Quem sabe?

Celular: nada.

Soro fisiológico e água. O tempo está muito seco (eu me convenço disso).

Duas cápsulas de vitamina C e duas de óleo de fígado de bacalhau só para garantir.

Uma borrifada de própolis. Pronto, agora estou pronto para Bourdieu.

Só mais uma olhadela no orkut. Nada.

Bourdieu, Bourdieu...

Ai.

Água.

Soro.

Que bom! Meio dia, hora de sofá e almoçar.

domingo, 7 de outubro de 2007

How about getting off of these antibiotics?

Ultimamente o silêncio perdeu um pouco de espaço para alguns tons. Mas acho que só depois de pensar muito - de sentir muito - e, principalmente, após não sentir muito, eu consegui me libertar de algumas aflições tão terrenas que me acompanhavam antes dos momentos de silêncio.


Só agora eu consigo perceber que a minha liberdade de me reconstruir a cada instante não está presa somente ao discurso.



Agradeço à claridade que só pode ser percebida em momentos de paz. Obrigado também a essa nova melodia que vem andando de mãos dadas comigo:




Thank you India
Thank you providence
Thank you disillusionment
Thank you nothingness
Thank you clarity
Thank you thank you silence

sexta-feira, 5 de outubro de 2007

Sans Bruit



Shiu.

Silêncio.

Escuta...



(...)




Ouviu?




(...)




De novo!


Hum...


Escuta, escuta...




Ouviu agora?





(...)







Um momento acabou de passar.

terça-feira, 2 de outubro de 2007

Claire



'She wore faded jeans and soft black leather
She had eyes so blue they looked like weather.

Now the wind is high and the rain is heavy
And the water's rising in the levee
Still I think of her when the sun goes down
It never goes away, but it all works out.'

domingo, 30 de setembro de 2007

O trinco

-Escuta... Estou indo na padaria, você quer alguma coisa?

-Não, obrigado.

Colocou a mão na maçaneta e girou-a sem, no entanto, puxar a porta: o trinco se recolheu tensamente.

-Viu...



Passou os olhos rapidamente pelo apartamento iluminado por uma cortina semi-fechada; o chão de taco estava opaco. No sofá, o violão buscava acordes num caderninho rabiscado.

-Hum... O quê?

Os olhos colocavam-se em seu devido lugar: dentro de uma longa inspiração. O trinco continuava recolhido à sua posição de iminente inconstância; mas, desta vez, a porta balançava num vai-e-vem milimétrico. Ao fim da expiração, o trinco liberou sua tensão.

-Nada, já volto. Até mais...

-Até.





E nunca mais voltou.





Melhor para o trinco, que pôde continuar em sua deliciosa resignação.

quinta-feira, 27 de setembro de 2007

A beleza antropológica


Este ano foi marcante para mim em diversos aspectos.

Em primeiro lugar, me senti muito mais livre para questionar antigos paradigmas que sempre nortearam a minha conduta e me permiti abrir-me para novas idéias e novas concepções de mundo. Passei a permitir que as coisas que eu sentia em relação ao meu contato com o mundo no seu sentido mais amplo também influenciassem na minha visão acerca das Ciências Sociais e, mais especificamente, da Antropologia.

Bem, um texto tem papel importante nesse movimento: "Os Usos da Diversidade", de Clifford Geertz. Seus escritos sempre mexeram comigo de alguma forma... Às vezes quando estou lendo o titio Geertz eu penso "Nossa, parece que estamos em sintonia...". Mas esse texto em especial eu posso dizer que me deu um novo fôlego acadêmico! Sempre me incomodou a idéia - que eu vejo muitas vezes cristalizada em algumas pessoas - de que eu teria que reproduzir, no futuro, um conhecimento acadêmico meramente formal. Ou seja, uma discussão vazia, que não acrescentasse em nada na vida das pessoas... E quando eu digo vida, eu quero mesmo dizer vida! É muito triste pensar que muitas vezes aprendemos só para ter a capacidade de exercer algum poder sobre alguma outra pessoa... Ou então simplesmente para subir, subir, subir na escadinha acadêmica e, depois...???

Pois bem, pensando nisso tudo: pensando no sentido mais profundo de estudarmos o outro, Geertz diz:

A tarefa da etnografia, ou uma delas em todo caso, é sem dúvida fornecer, como fazem a história e as artes, narrativas e cenários para refocalizar a nossa atenção; não, no entanto, os (cenários) que nos tornam aceitáveis para nós mesmos pela representação de outros reunidos dentro de mundos onde não queremos e não podemos chegar, mas os (cenários) que nos tornam visíveis para nós mesmos pela representação de nós e todos os demais postos no meio de um mundo cheio de estranhezas irremovíveis das quais não podemos nos manter distantes.

É exatamente esse tipo de conhecimento acadêmico que eu quero: aquele que me jogue no mundo, não o que me deixe à parte dele.



Obrigado mais uma vez, tio Geertz!

domingo, 23 de setembro de 2007

Falling

'-Are you falling asleep?


-No... I'm falling apart.'


sábado, 22 de setembro de 2007

Love

Love - John Lennon

'Love is real, real is love
Love is feeling, feeling love
Love is wanting to be loved

Love is touch, touch is love
Love is reaching, reaching love
Love is asking to be loved

Love is you
You and me
Love is knowing
We can be

Love is free, free is love
Love is living, living love
Love is needing to be loved'



O amor não existe a priori. O amor não existe como essência. Não há essência no amor.

Não se encontra o amor; tampouco se perde o amor.
O amor, ele é vivido. O potencial do amor é infinito, uma vez que ele troca olhares deliciosamente singelos com o momento.

O amor é liberdade: é a prisão do instante.
O amor é alienar-se; o amor é atingir-se.




O amor é a coisa mais real que podemos experimentar.

quinta-feira, 20 de setembro de 2007

Dormir

Preciso dormir. Preciso dormir. Preciso dormir. Preciso dormir.
Preciso dormir. Preciso dormir. Preciso dormir. Preciso dormir.
Preciso dormir. Preciso dormir. Preciso dormir.Preciso dormir.
Preciso dormir. Preciso dormir. Preciso dormir. Preciso dormir.
Preciso dormir. Preciso dormir. Preciso dormir. Preciso dormir.
Preciso dormir!Preciso dormir! Preciso dormir! Preciso dormir!
Preciso dormir! Preciso dormir! Preciso dormir! Preciso dormir!
Preciso dormir! Preciso dormir!Preciso dormir! Preciso dormir!
Preciso dormir! Preciso dormir! Preciso dormir! Preciso dormir!
Preciso..............Preciso.............. Preciso.............. Preciso..............
Preciso.............. Preciso.............. Preciso..............Preciso..............
Preciso.............. Preciso.............. Preciso.............. Preciso..............
Preciso, não! Aula... Dormir, sem contas... Afinal! Preciso preciso
Como? Ela estava lá... Dormir! Precisamente, o saber local, vou.
Preciso.... Dormir.... Dormir.... Dormir.... Ahn? Oi? Me lembro.
Resignificação, amor... Dormimos, quem sabe? Son, he said!
Grab it, drop it. Preciso. Preciso. Precisoprecisoprecisopreciso.
1234567777.... 8... 9.......10.... Preciso... Preciso.... Preciso..........
Preciso.
Preciso.
Preciso.
Preciso.
Preciso.
Preciso.
Preciso.
Preciso.
Preciso.
Preciso.




Dormir...

quarta-feira, 19 de setembro de 2007

A suavidade que se segue

Acordei-me de um sono muito estranho, um sono de... séculos. O quarto estava bem mais escuro do que o normal e, estranhamente, não ouvia qualquer barulho: nem mesmo o habitual cri-cri-car dos grilos ou o movimento sofrível do pequeno ventilador. A casa estava tomada por um silêncio absoluto, e tal silêncio conspirava contra a minha vontade de tomar consciência do meu corpo e levantar em busca de um copo de água. Parecia-me que a dimensão dos sonhos ainda me empurrava violentamente contra a cama, como mil exércitos pressionando-me para dentro de mim.

Eram as horas mortas da madrugada, certamente. Horas para as quais a ciência e a lógica fechavam as pálpebras, com medo dos mistérios que podiam fitar-lhe os olhos. Um olhar que, por conter tanta verdade, assustaria qualquer um. Acredito que todos nós já nos deparamos com tais horas durante o nosso sono, mas – espertamente – voltamos à condição segura do inconsciente e do ego. Eu gostaria muito que não tivesse visto o que vi, que tivesse virado para o lado e voltado a dormir. No entanto, a sede era demais, uma sede extra-humana.

Como num salto a um abismo, meus membros voltaram a si e senti-me restituído. Um alívio. Uma falsa sensação de controle sobre as horas mortas. Lentamente, coloquei os dois pés no chão, ao mesmo tempo. Esfreguei o rosto: meus olhos ardiam a secura. Finalmente os abri conscientemente, e o que vi foi o silêncio preenchendo o quarto como um éter – fluido e, por isso, amedrontador. Levantei-me e, lutando contra a escuridão, andei lentamente, apalpando os objetos em volta. Procurava um interruptor como alguém que procura uma resposta, desesperadamente. Achá-lo foi um alívio; ver que não funcionava jogou-me novamente na condição da aflição tateadora. Saí do quarto.

No corredor, as janelas traziam a luz pálida da lua. “Devem ser quatro da manhã”, pensei. Olhei para o meu relógio de pulso e ele não estava lá. Tentei recorrer à memória: “eu tirei o relógio antes de dormir?”. Não me lembrava. Em verdade, não me lembrava de ter ido dormir. Fatos desconexos me vieram à mente, não sabia dizer se havia sido um sonho. Entretanto, uma memória que me escapava era a de ter-me deitado naquela noite. Parecia que eu dormia havia séculos...

Ao final do corredor, havia a porta para a cozinha à direita e a entrada para uma sala ampla à esquerda. Andei cuidadosamente, tentando não chamar a atenção para os meus passos. Tarefa difícil: a cada um deles, a madeira no chão estalava e rangia, quebrando o silêncio (ou, quem sabe, corroborando com ele). No final do corredor, virei à direita. Novamente tentei acender a luz, mas nada funcionava: “Estamos sem energia”. Encontrar o velho filtro de barro repleto de água foi como abraçar um irmão: senti-me em casa novamente. Aquela água descia a minha garganta completando-me existencialmente. Senti minhas formas completarem-se novamente. Sentia com clareza meus braços, meus dedos, meu pé - descalço tocando o chão frio. Sentia-me inteiro.

Havia perdido o sono. Na verdade, nunca o tive. No entanto, minha cabeça doía e meus olhos ardiam o cansaço. Meu corpo não. Dirigi-me à sala, onde havia uma grande janela com vista para o quintal. Olhei através dela e vi formas estranhas no jardim: talvez fosse o efeito da escassa luz, não sei. Mas algo parecia estranho: ele estava maior, mais comprido. Ao fundo, a mangueira e a amoreira pareciam menores, como eram há muitos anos. Aquela sensação do silêncio como um éter se multiplicava e se intensificava no quintal. Não se tratava mais de um éter fino e meticuloso. O silêncio agora se estendia pesadamente sobre o chão, parecendo uma forte neblina. Mas não havia nada ali; certamente não. Como uma criança, abri a janela e sentei no parapeito, olhando de volta para a sala. A mesa de jantar, o piano, o grande relógio ao lado da cristaleira... Tudo em seu exato lugar. Quando percorria o espaço com os olhos, meu peito apertou-se subitamente: “O espelho!”.

O espelho! Ao lado da cristaleira, o espelho! Havia um grande e grave pano branco cobrindo-o. A neblina silenciosa, que antes tomava conta do quintal, entrava pela janela que eu havia aberto. Sentia-a nas costas, passando por entre meus dedos que se apoiavam no parapeito. Sentia seu frescor gélido de horas mortas da madrugada. A neblina se tornara tão pesada... Parecendo um grande rio passando por mim, um rio de águas densas, longe da nascente.

O espelho... Levantei-me e andei ao seu encontro. Meu coração gritava uma angústia tão forte, novamente não me sentia mais inteiro. Sentia que meu corpo se espalhava por toda a sala. Esta, por sua vez, tomava uma dimensão universal e transcendente. Sentia minha mão direita tremendo ao estendê-la em direção ao pano. Fechei os olhos e puxei-o, revelando a face espelhada. Nesse instante, percebi a verdade sobre as horas mortas da madrugada. Percebi que não se tratava de um tempo como o conhecemos: tratava-se de um instante apenas. Um instante no qual o silêncio era o espaço e a consciência era a sua terceira dimensão. A consciência.

Olhei-me no espelho. Certamente o que vi não é algo que se vê normalmente quando se encara o próprio reflexo. A imagem tinha vida, lutava contra mim. Senti a mesma sensação de quando se luta para acordar: tomada de consciência. Com muita força, consegui dirigir meu olhar para os meus próprios olhos... Assim como quando se vira um microfone para uma caixa de som, a imagem amplificou-se numa microfonia absurdamente alta. Percebi, então, que meu corpo se ampliava em tal microfonia, formando uma rede branca em volta de mim; uma rede que aumentava de tamanho, concentrava seus nós e depois se expandia novamente.

Lembranças, lembranças, lembranças... A angústia, que antes era predominante, dava lugar, se desfazia, sintetizava-se na suavidade que, de alguma forma, preenchia de maneira muito mais concreta os espaços. Ela não entrava sorrateiramente por entre as frestas. Ela tinha a dimensão eterna e infinitamente acolhedora de uma terna recordação: o poder explicativo das metáforas, o rico saber de uma seqüência de acordes que o acompanhou por toda a vida. O piano. A madeira: cheiro e cores. A cristaleira. A mangueira. O quintal, amplo como o mundo. Uma cena de filme, uma risada. Era essa a dimensão da consciência, que transcendia o tempo e o espaço da sala. Transcendia o silêncio, era mais do que ele.

A imagem no espelho se perdeu, assim como o meu próprio corpo. Restou-me a consciência, que não mais tentava abarcar o mundo, mas sim era parte dele.

terça-feira, 18 de setembro de 2007

Canastra


Os dias são tão efêmeros



E a vida é tão breve.




Mas,


olha,


não se apresse.

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Eu dou o vivo e você dá o morto.





Tá?

segunda-feira, 17 de setembro de 2007

Summerlong


'I know how to play this game
One, two, three and I’m safe
Count real slow to five
You couldn’t keep me around if you tried.


There are some things I can hardly say
You’ve got me feeling a brand new way
Please, don’t let this be summerlong.'