domingo, 25 de novembro de 2007

Morre a Tia Doca

Morreu a Tia Doca.


Parte das casas de cima e de baixo foram-se também.

A subida que as separa comoveu-se com a perda;
Por um momento, ela quis curvar-se para que as duas casas se encontrassem num abraço.


Morreu a Tia Doca.


Desfizeram-se os nós de tantas lembranças e vidas cruzadas - perdidas em uma cidade esquecida.


Paradoxalmente, para a surpresa dos cientistas, os quintais do mundo estavam ali: entre mangueiras da memória, cachorros atemporais e jaboticabas pisadas no chão.



Já sei por que morreu a Tia Doca.

O tempo passava por Cajuru e resolveu parar.
Foi até a praça, recusou o sorvete mas aceitou o estalinho. Subiu no coreto e olhou para a Igreja reformada: olhou as crianças e suas mães, os bêbados e os carros estacionados. Viu pessoas comprando pão, olhando revistas, jogando dominó e conversando; todos eles tão alheios à sua presença.
Pensou... "Vou passar na Tia Doca."

Lá o tempo foi bem recebido: ofereceram-lhe bombons e quibe. "Não, obrigado... Acabei de almoçar, Tia Doca!".


"Você é filho de quem, bem?" ela disse.
"Ora, sou seu filho, Doca..."


O tempo então pegou-a pela mão e ajudou-a a levantar de sua cadeira. Cuidadosamente desligou a TV e caminhou com ela em direção à porta de entrada.
Os retratos na parede olhavam condescendentes: todos eles tinham uma lembrança terna da Tia Doca.
O piso de madeira rangia uma sinfonia de despedida aos passos lentos e inseguros do filho e da mãe... Os sons de tantas tardes e noites condensavam-se naquele réquiem calmo e consentido.



Assim viveu a Tia Doca.

quarta-feira, 21 de novembro de 2007

De repente... bonança.

O amor subverte lugares e espaços...



... é calmaria em ação.



O amor age mergulhando-se em piruetas fluidas: como as formas de uma nuvem, encontra a sua razão-de-ser no momento em que existe.
O amor se esconde nos cantos mais macios da memória, capturando as faíscas de vivência - antes tão dissonantes - e enchendo-as de cores e contornos uníssonos.

O amor, com um sorriso tímido, passa delicadamente a sua mão envelhecida sobre os ansiosos cabelos daqueles que tentam defini-lo.




O amor... calmo... vai e volta...


... como o vento suave de um amanhecer na praia.




O amor é esta manhã que nunca tem fim.

domingo, 11 de novembro de 2007

Dois pés no freio




Um acorde conhecido tocou na minha lembrança. Os tempos haviam mudado, mas era a mesma época do ano; logo, aromas e luminosidades semelhantes.

A pura ilusão da familiaridade. Como se enxergasse uma pintura de um povo distante, aquele momento - aquele acorde - deixava o seu significado mais profundo escapar entre os dedos toda vez que eu arriscava abrir a boca em busca de algo a dizer.

O olhar, no fundo, é sempre assim: coextenso ao momento.

Pura ilusão.

quinta-feira, 8 de novembro de 2007

0800

Minha consciência parece estar em tudo sem estar em nada.

Meus sonhos misturam, ao som de um Mozart soturno, habitus e campo sem o menor constrangimento: Bourdieu em tudo, até na calda de chocolate que cobre o sorvete de flocos.

Internalizei a chatice antropológica e me atrevo a analisar esquizofrenicamente a minha própria composição.

Cansaço, eu sei. Mas para que explicações simples?

Estafa do mundo e das pessoas que andam sobre ele gritando, discursando, pagando, metaforizando, sexualizando, deserotizando, musicando, fofocando, provando, desessencializando, essencializando, procurando, acalmando e, principalmente, ironizando.

Chega de gerúndios rodopiantes!


'Não quero mais saber do lirismo que não seja libertação!"

Até você, Manuel?

Eu não quero mais é saber de posts com moral da história.

Portanto eu deixo a você, leitor caridoso desse blog, a tarefa de ligar gratuitamente para o 0800 e me dizer qual é a razão de ser deste texto que lhes apresento.

segunda-feira, 5 de novembro de 2007

Sobre o aquecimento global






'Again last night I had that strange dream
Where everything was exactly how it seemed.
No concerns about the world getting warmer,
People thought they were just being rewarded
For treating others as they like to be treated;
For obeying stop signs and curing diseases;
For mailing letters with the address of the sender:
Now we can swim any day in november...'

sexta-feira, 2 de novembro de 2007

O corpo





O corpo, tal como é, resiste às mais violentas tormentas do tempo,

Durante a tempestade, ele vai e vem: sentado num balanço, o corpo freia pra parar.




O corpo carrega história: na face e no coração, as marcas de séculos; no bolso da mão direita, o eterno devir.



O corpo não se reconhece como tal,

Ele assovia uma dor, esboça um sorriso. Suspira mil ais, pensativo:

'Quando é que isso acaba?'


Nunca.


O corpo anseia sempre a contradição.