quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

O último herdeiro




O último herdeiro,
selo do fim de uma linhagem,
sopesa em solo íngreme
seu também último respiro.

Diz:

“Fecha-te os olhos e dorme tranqüilo.
Imagina-te longe desta terra arrasada.
Sonha-te com o tempo de um amor a salvo.
Unge-te de coragem.
Faz de ti o teu desconhecido.”

A espuma ao canto de seus lábios,
a vista avultada por uma sombra cristalina,

- como palavras vaporizadas
pelo suor da terra –

eram o triste índice da verdade,
que nasce dos poros,
salga a boca,
imobiliza o testamento
do também último respiro,
de uma linhagem em fim:
o último herdeiro.

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Como se




O meu seio afoito
testemunha a apostasia
escorrer das contrações alheias
à ablação do ar no músculo cardíaco.

Qual quinhão de metáfora
não se estende entre sístoles e diástoles:

o sopro insubmisso,
capturado no entrefluxo,
como se remorso oblíquo
da imagem escorreita do amor.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Casa



Não se está na casa.

À meia luz,

não se está na casa:

não se vê o número na parede.

No lusco-fusco,
não se está;

que se toque
na pedra branca,
arenosa,

que se sintam, lentamente,
na palma da mão,
recuos ao infinito,

que se arranquem com as unhas
farelos calcados
de sua presença;

Não está.

O sol oblíquo no rosto,
os lábios rentes ao muro,
rarefazem-se as sílabas
do estranho sempre familiar:

“nunca

se está”.


Na casa,
não.

Apenas.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Rococó encapsulado




O sol se põe
sobre a profusão de casas brancas:

a cidade brilha
o reflexo de sorrisos capturados;

velhos pombos acasalam
sob frígidas telhas;
mancham de tons de cinzas
as paredes alvíssimas,

que cobrem as colinas
de espinhas dorsais retorcidas
até se perder de vista.

De novo.
De novo.
De novo.

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Seria o mesmo,
não fosse o calor da tinta fresca,
que ainda guarda o riso escarrado
da máquina estampante

deitando retratos,
de uma vida feliz,
de uma geração saciada.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Prisma



À sombra do ar,
estanque na boca aberta,
cintila o silêncio,

picotado em mil cores,

a pulsar,
fremido pela iminência
do sopro do adeus.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

14ºC



Sinto nascer,
da tensão entre nossos corpos,
o orvalho,

condensado no ar

em torno do rastro
do brotamento
da palavra.

domingo, 17 de outubro de 2010

Palavra estrangeira III



O pé
que oscila
sobre as pedras arruinadas
não hesita:
seu movimento não rompe nada,
não cumpre qualquer desígnio;

rente ao metal contorcido,
não se afia o abandono em sua pele,
nem se dobra o acolhimento em seus dedos;



entra meramente.



No vulto róseo, que sobe ao ar
e acompanha o gesto humano,
a palavra trai-se
e cai exausta

“sem memória, sem angústia”.

Mutando-se,
ela arfa moribunda:


marca da passagem,
trata-se somente do sopro
da terra dissoluta.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Palavra estrangeira II



As cinzas vermelhas,
flocos,
decaem.

Enredam seu propósito
e, astutamente,
suspendem,
com paciência,
seu negativo,

que se esparrama em bolor,
sem pressa,
anos a fio,
na superfície do muro,
onde já não se pode ler com clareza
a palavra talhada:

(Ouve-se então o som ensurdecedor das trombetas de uma espera tão longínqua: o colapso dos tijolos, que asseguravam, insinceros, a santidade da voz, prestes a ser restituída)

"Entra, proscrito."

Palavra estrangeira I




Sulco em cimento
cravado
em gesto:
violentas fissuras
depositando-se compulsivas.

(O tempo,
coagido entre a mão que molesta o muro
e o pó,
que desata o sentido a contravento,
sedimenta-se cerrado:
entesa o elã de revelar-se
enquanto ínterim que nunca foi -

promessa sempre repetida,
insistente,
jamais obliterada.

Cerzido,
cala a ressurreição
que um dia fá-lo-á leito torrente,
a correr fundo,

emergindo somente
para redimir,
num golpe,
o signo inscrito)

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Coragem



Confia a mim
o teu silêncio castanho,
tão austero,
reluzindo no lapso
dos teus músculos oculares,

paralisados

no instante em que

teus olhos,
capturados
enegrecidos
(ternos de tanto medo),

revolvem, em mim,
a suspensão
do único momento
quando,

um dia,

disse a palavra exata
e esqueci que era
necessário
esquecer.

domingo, 29 de agosto de 2010

Desejado




Caminharei no teu olhar,
Por entre as sendas de tua íris:
rajadas de vento, ansiando o corte
que arrastará consigo nossos segredos.

Afastarei com cuidado
Os grãos de areia que,
revoando em ciclones castanhos,
rebatem em meu rosto refletido.

Terei sede quando, enfim,
Meu corpo escasso pedir socorro
E meus poros suarem toda a miragem
que,
tão longo,
habitou fundo a minha casa.

Assim,

Estancando o respiro
que antecede a palavra,

Acordarei deste sonho.

E as imagens,
concatenadas numa manhã de tanto esmero,
Serão apenas parcas lembranças:

Peças desconexas de brinquedo
Passando de dedo em dedo,
Enterrando-se em terra úmida,
Esperando o esquecimento;

Letras indecifráveis
De um manuscrito antigo,
Meneando-se melosas,
Feitas cantigas recitadas por crianças;

movendo-se do giro
do próprio ocaso;


tramontando o desejo
de existir
no tempo.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Le déplacement



Sonhei
Os ecos do meu próprio gesto:
Arco sobre a sombra,
Pesada em ausência,
Carente de um novo sacrifício;
Consciente

de seu primeiro
descompasso.

Vi
Os sulcos no meu reflexo:
Cravagem desastrosa,
Reféns confessos
Dos choques contínuos
Do obturador;

testemunha
do sono incompleto.

Assisti,
Convoquei-me:
Por ardente decreto,
Ao desmantelamento
Do meu próprio corpo,
À inevitável queda

de cada mácula
despencando do nu...

...irremediavelmente compresso
ao inevitável momento da vergonha.

sábado, 26 de junho de 2010

Amor



O amor vem do silêncio,
É urdido em seu ventre
abissal.

Depois desponta
num crescendo arisco;

Cintila
delicado
enxame de ecos

que,
Escalando ruídos,
Coletando cacos de ruínas,

- restos de humanidade, de história esquecida -

Se rebatem em arpejos,
Tragados pelo vazio
que os criou.

Até que,

Os olhos
- fechados -

O ser
- fendido -,

Torna-se audível:
O amor não é mais silêncio.

Letra apagada
que não é mais lei
não é mais.

Vida.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Um barco ou poema um pouquinho desafinado




Catei,
uma a uma,
as faíscas que caíam
da esquisita dança
de um começo,
que estalava
e girava em falso, agarrado
ao seu próprio fim.

Com cuidado,
construí um barquinho
com os restos que escapavam
dos nossos
olhares complacentes,
dos nossos carinhos sinceros,
nossos abraços em silêncio.

Não foi sem dor
que me despedi da embarcação
azul e laranja,
ornada de pequenas velas
amareladas,
que fiz para flutuar a esmo
e queimar sozinha
numa imolação quietinha
e escondida:

a capitulação
do ângulo reto
entre o sol e o mar.

Passada a exasperação
da oferenda;
descida a noite,
sobraram somente os olhos
ligeiramente avermelhados:
não sei se pelas rajadas do vento
marítimo
que bufava diante da canção
um pouquinho desafinada
que cantava o nosso tempo;

ou se pelo meu espelho
que, ficando para trás,
esquecido pela nau,
escurecera sem ninguém perceber.

Reflexo mesquinho:
qual o qual,
- índice de solidão -,
com um pouquinho de escárnio,
e bastante perplexidade,
estilhaçara-se ante o meu rosto,
cravejando pedacinhos de prata
na minha íris,

que, arqueada,
caravelava,
para frente e para trás
em busca de um lugar
para deitar suas costas
cansadas.

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Da revolução




I – A lei

O brusco
abalo
do sereno
riso
craveja
a culpada
carne:

O grito.

II – Non liquet

O punhal
cai
da mão
do sacrificador:
sua ablativa
pupila
é abjurada

Do mito.

III – A catástrofe

O corpo
devastado
restituído
tateia
a ferida
aberta
do silêncio:

Sem sangue.

IV - O anti-Éden

Nossa queda
Nu sem mácula
Voz absoluta
Index veri.

terça-feira, 8 de junho de 2010

Às vagas




Como o primeiro homem –

mil léguas arrastado pelo vento
ao ver seu rosto refletido –

Depuro em mim
A estranheza em um vulto familiar.

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Tua lembrança clama
Minhas mãos ressequidas,
Meu hálito breve.



Mas,
refreados subitamente,
Já não podem tocar
O corpo que é informe:

Que, no desluzir-se,
é arrancado

- gota a gota –

para a quina do ser.

----------

No eco do gesto interrompido,
Sinto reverberar,
Como ondas nascendo de uma gruta,
Aquilo que afaga meus cabelos,
Consola o ocaso do eterno,

Suspende,

Suspende,

Suspende:


o silêncio.

terça-feira, 18 de maio de 2010

O homem sem rosto




No jogo plúmbeo da consciência,
que se afasta,
Tece-se o vagaroso elã
de ir longe,

demais.


Os passos se equilibram
sobre o fio vermelho no corredor.
Apontam, inaudíveis, em direção à sala,
os estalos da velha madeira envernizada,

demais.


A mão tateia as paredes brancas,
afasta a névoa em teia,
enche-se de calores úmidos,
e roça nos rasgos dum êxtase vazio,

demais.


O piso em falso anuncia o grito -
contido, abafado, silencioso: infantil.
O convite sussurra os cabelos,
o riso emerge da neblina, assustador;
são dentes e olhos brancos,

demais.

----------

O tilintar dos espelhos quebrados rompe a noite.
O rosto, de único golpe, afunda-se no deslocamento brusco
dos mil cacos que iluminam as ruínas em uma só cor:
terrivelmente uníssona;
terrivelmente real.

Os olhos revirados para cima
vêem recair sobre si sua imagem refletida

no céu sem qualquer estrela,
pesadamente negro.

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Museu japonês




Abro a caixa de lembranças
E signos,
indecifráveis,
escorregam em suas bordas:

O destino rasgado em silêncio,
O assobio frio de junho,
E todos os cantos da vida,
que não se mostram à imaginação.

A intumescência dos vãos -
Preenchendo de vertigens os odores balsâmicos,
Nos corredores do museu japonês -
Fez urgir, na respiração presa, a pergunta:

Durmo?



Quero acordar.

domingo, 11 de abril de 2010

Deitou




Bate, bate
Saudade rebate,
Num’alma sem tempo para errar.
E o vento,
Que não é mais jovem,
S’enlaça
No canto e na dobra,
Revoa a poeira do eterno soçobrar.

Queimam, queimam
Cílios requeimam,
De tão pura distância do sol.
E o tempo,
Que não é mais ébrio,
Se encurrala
Entre o ser e o vazio,
Envelhece a quem lhe dirige o olhar.



Bate, bate
Saudade rebate,

Cresce saudade em mim.
Cresce saudade de mim.

terça-feira, 6 de abril de 2010

Descoberta





Te encontro ali,
na esquina,
como o vento que nasce da confusão das ondas:

penteia a areia
e acaricia os amantes

- tranqüilos -

de mãos dadas sobre o pôr-do-sol.



Te encontro no sobressalto da vida,
Na arritmia das horas,
No cruzamento das nossas pernas com o eterno:
Na dama-da-noite que ri do tempo,
– É o cheiro de infância,
o odor da velhice;
a madrugada longa –

É o risco azul na escuridão prenhe da manhã.


Te encontro em outras e outros,
Tantos outros
Tant'outro
Que, rasgado no espelho,
Sou eu mesmo...

...descoberta:



Te encontro em mim,
No rendado tecido onírico,
Que afoga Chronos
no desespero das horas passadas,

futuras.


E,
quando,
na respiração
entrecortada,
fremida,
premente,
os olhos, abertos,
soluçarem um balbucio:

'agora'.

segunda-feira, 29 de março de 2010

Tsuru




Desde tempos passados, carinho delicado: presente lugar, altitudes oceânicas.
Des-passados, presente oceânico: carinho em altitudes delicadas.
Tempos oceânicos, alti-presente carinho: delicado lugar.
Lugar no passado, desde altitudes presentes: carinho.
Delicadas altitudes: passados-tempos.
Tempo: des-oceanos.
Oceânico:
presente
passado
carinho.

sábado, 6 de março de 2010

Sobre vida




Suspenso por tensos barbantes,
Prendo a respiração
Guardo-a na garganta, no tronco,
Até que ela se dissipe em mil faíscas
nas pontas dos pés.

Solto-me do diabo em minhas costas,
Dou adeus à eterna repetição das horas,
À cansada sedimentação de gravidade
Nos pontos cegos da memória;

e toco a vida


Com a tristeza que carrego nos dedos;
Com a potência dobrada nos seios;
Com o fulgor que cintila em minhas coxas contraídas.




Contraídas: sobre a vida.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Like tears in the rain






O belo espetáculo
da morte de uma constelação
Estende-se no tempo
para além de si:

dobra vagarosa do universo.


Da mesma forma,
a morte de um robô lança luz
sobre a experiência humana:

num ponto de calor, a intensidade da morte iminente
se transforma em pura poesia;
a experiência humana,
encontra seu paroxismo no salto quântico da história,
mostrando ao universo a beleza travestida de angústia,
explodindo em um milhão de cores

que se perdem no vácuo,
na dobra,
e se dispersam,
rarefeitas,

'like tears in the rain'.

O robô guarda a resposta para o silêncio do homem
em sua busca pela beleza fugidia:

'time to die'.

sábado, 20 de fevereiro de 2010

A Joachim na Montanha





Depois da tempestade
Insiste uma chuva fina em sacralizar o vento
E profanar o trovão.

Ouço um galo longe,
Lá onde rebatem os uivos do céu
E ressoam os sinos de luz: sobressaltos de Chronos.

A casa está vazia
E é lá de fora que entendo chamarem meu nome -
desconstruído, amassado, irreconhecível:
fonemas brutos, toscos, de outros arquitempos.

Sinto o apelo atravessar meu corpo nu
Pura carne, músculos tensos:
sorriso sacrificial.

O soçobrar dos tambores
Assusta o que resta de humano em mim:
os olhos pensos,
os ossos fatigados
e o constante destilar de um humor plúmbeo

Que não corroe,
Não mata,

Apenas faz sobre-viver.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

O silêncio de Prometeu




No texto mais antigo,
No manuscrito mais opaco,
Havia uma frase escrita:

"...e foi assim, num jogo de dados,
que, das mãos de uma criança, o homem
saiu da infância e tomou as rédeas do tempo."

Diz-se que, no entanto, logo em seguida,
Um monstro diabólico se apossou do jogo,
Aprisionou o fogo sagrado
E aferrou o herói às agruras do cotidiano.

E foi assim que, numa cisão brutal,
O homem saiu do divino e caiu no mito.

E, como castigo, como pena,
Fez-se do fogo que reluzia nos céus
A matéria da roda que gira sob os pés
Daqueles que, dia após dia, carregam o sofrimento terrestre.

Atados, assim, a essa triste fortuna,
Os resíduos do infinito nos são jogados:


Migalha por migalha,
Segundo após segundo,
Até que todas as cores se confundam
Num terrível tom ocre
E todos reinos sucumbam
Diante de um tempo

Que, sem alarde e sem surpresas,
Gargalhou da história dos homens
E tomou de assalto a felicidade.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Infância





Quando o sol morrer
E a carne virar cinza
E a cinza pó;

Quando enxugarem as lágrimas,
E torcerem os corações,
Dando-te a chave do reino;

Construirei uma fortaleza em volta de ti
Com gravetos e pedras,
Fogo, desejo e ilusão.

-------------------

Quando a chama contorcida
Digladiar-se sob teu esterno,
E a mesma canção pulsar em florestas e desertos;

Quando, num átimo, montanhas de vulcões
Cobrirem com lava quente uma grave lembrança,
Fazendo latejar tua garganta roída;

Soltarei um urro de dor...

... e quebrarei as bússolas

Para que somente o vento
Dite teu caminho
Pra casa.