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Não te quero num cavalo branco galopante.
Oooohhh la la la. Oooohhh la la la. Ooooooohhhhhhhhh La la la la la!
Como resultado do meu último post, surgiram muitas respostas. Selecionei aqui as que mais contribuem para a continuidade da discussão e resolvi postá-las para dar mais visibilidade à discussão assim como as respostas dos outros.
PS: Faustina, ainda aguardo a sua resposta!
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Andréa
Não sei se entendi tudo, aliás, tenho quase certeza que não (heheh)! Mas alguma coisa, sim, e, do que pude entender, achei teu texto bom. E bem, corrija-me se no que eu escrevo há algo que seja fruto de minha má compreensão.
Bom, tenho a impressão que há um acordo sobre a natureza do que se denomina “motor da história”, quero dizer, suponho que todos concordam ou concordaram que o que move a história não é alheio aos seres humanos, que a história é por excelência um produto das relações sociais, nas quais um componente subjetivo existe, necessária e essencialmente. Com isso quero dizer que, sim, penso que seja certo dizer que relações sociais não são concretas, no sentido que elas não existem como algo material ou materialmente perceptível. É evidente que as relações sociais não têm existência física e que, sendo relações, pressupõem mais de uma pessoa para que aconteçam num determinado tempo e espaço. Do que se diria, então, por decorrência lógica, as relações são um acontecimento do instante. Ok.
Mas há umas coisas que não entendo ou, pelo menos, não teria tanta certeza
E, por conseqüência dessa minha forma de ver as relações como realidade, teria mais cautela ao afirmar que “Tal realidade e suas manifestações fenomenológicas têm necessariamente que se conectar de maneira transcendente, senão tais manifestações se fechariam sobre a maneira subjetiva através da qual somos afetados”. Quer dizer, entendo que através das relações que estabelecem entre si os homens compõem parte da realidade, transformando-a ou reproduzindo-a. Noutras palavras, ainda que a realidade do mundo físico exista de forma independente aos seres humanos, estes podem atuar sobre esse mundo físico, criando uma outra realidade pelas relações que estabelecem com esse mundo físico e, não apenas assim, mas também pelas relações que estabelecem entre si. Caso contrário, a realidade e a história seriam coisas completamente separadas uma da outra. Contudo, como entendo, o que move a história não pode ser visto como algo externo a nós exatamente pelo fato de que, estando em relação com o mundo, não só estamos submetidos a ele, mas também interferimos nele.
Por isso, ainda gostaria de considerar mais duas coisas. Uma que se ‘o homem’ pode mesmo, através das suas relações, interferir sobre a realidade - quer dizer, se a história é ‘dos seres humanos-, isso significa que, mesmo que as relações sejam um acontecimento efêmero, elas implicam pressupostos e conseqüências que as ligam a outros momentos do tempo e a outros espaços diferentes daqueles nos quais aconteceram, independentemente da consciência ou da memória humana, seja dos que participam daquelas relações ou não. Com isso não quero dizer que as narrativas e seus significados não sejam um produto da nossa consciência reflexiva, mas que entendo que, num momento ainda anterior a essa consciência, os instantes interconectam-se uns aos outros através dos pressupostos e conseqüências ou efeitos das relações, pois mesmo que elas tenham, necessária e essencialmente, um componente subjetivo, isso não implica uma plena consciência do seu sujeito ou do seu observador sobre a mesma. Eu chamaria isso de processo histórico. Um ex tosco: uma firma contrata trabalhadores para produção de carros (o que significa uma relação de trabalho) de um novo modelo com nova tecnologia de combustível (significa uma nova relação com o meio físico) na expectativa de vencer o concorrente externo (significa uma relação de concorrência com previsão sobre o futuro) e aumentar seus lucros (significa uma relação de apropriação), no que está pressuposto a existência de um mercado de carros (significa relação de compra e venda e de competição entre as firmas) e o uso deste tipo de transporte (tipo de consumo, status etc); essa decisão trará conseqüências ao mercado de carros e de trabalho e até pode ser frustrada por n motivos não previstos, a firma ser adquirida pela concorrente externa (significa uma mudança na relação de concorrência) ou as compras de carros aumentarem; e tudo isso independente do que os envolvidos pensem sobre os efeitos ecológicos e econômicos do transporte por meio do carro, o seu significado político etc. Enfim, a idéia é que o momento de cada relação interconecta-se com os outros por meios das próprias relações, seus efeitos, conseqüências e pressupostos; e que por essas relações, que muitas vezes têm produtos concretos (os carros produzidos, os contratos efetuados e refeitos etc) se interfere na realidade, gerando a história.
Por fim, acho que uma diferenciação entre as relações pessoais e sociais também poderia nos ajudar a pensar. Não acho que essa separação exista de maneira evidente. Ao contrário, todas as relações da nossa vida são, simultaneamente, pessoais e sociais, mas em alguns momentos convém destacar mais um lado que outro. Digo isso por um motivo muito simples: as relações sociais têm uma duração longa, além do seu tempo de duração efetiva, que não está só na memória daqueles que a vivenciaram, mas materializada nas diversas formas de organização das relações sociais. Por ex, as leis que servem para tentar coagir os indivíduos a relacionarem-se de tal ou qual forma, a moral religiosa ou laica que constrange as relações que fogem ao padrão estabelecido etc. Essa materialização das constrições às relações sociais nem sempre existe e nem é necessária para caracterizar uma relação social, mas acredito que sirva para indicar quanto uma certa relação é importante numa dada sociedade, portanto, como se encadeiam às outras sociais, construindo a história, e por que há relações tão mais consolidadas e difíceis de se alterar que outras.
Provocação:
O muro de Berlim caiu, não existe mais. Mas a venda do trabalho, a acumulação do capital, a concorrência entre as grandes empresas multinacionais, as guerras entre as nações para exploração dos recursos alheios, isso tudo continua, ainda existe. Moral dessa história: Há certas relações sociais por ai muito mais difíceis de transpor que muitas paredes.
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Felipe
Andréa, concordo com quase tudo que você disse. Vou apenas responder a alguns pontos do seu texto.
A primeira, o que se entende por realidade. Porque se “a realidade das coisas se resume ao fato de que suas aparições e suas manifestações não dependem do meu ser; ou seja, sua existência está ligada a uma razão que não depende do meu bel-prazer” - e eu entender, conforme se parece querer dizer, por ‘o que depende do meu ser’ como algo que é subjetivo - então, por decorrência lógica do que foi dito, as relações sociais não existem ou não são reais.
Primeiramente, a minha intenção com esse trecho que você destacou era a de mostrar que a a natureza das relações sociais é completamente diferente da natureza da 'realidade empírica'. Portanto é insustentável uma Ciência Social atribuir a si o estatuto de ciência do concreto. É claro que as relações sociais existem e são reais, seria um absurdo dizer que não. Aliás, como bem disse o André, eu poderia ter maneirado na hora de utilizar tantas vezes a palavra 'realidade', porque pode criar um mal-entendido, como de fato aconteceu. O meu esforço em falar dos objetos do mundo como algo 'real' se deu no sentido de evitar tal concepção: se a nossa relação com o mundo é necessariamente uma relação subjetiva, se levarmos isso às ultimas conseqüências, talvez estejamos vivendo uma grande ilusão na qual as coisas à nossa volta não passam de devaneios da nossa mente. Foi para refutar isso que eu disse que as coisas existem independentemente da nossa vontade; tais coisas têm razões-de-ser, ou essências, que independem de nós. Essa razão de ser é em si aquela dupla face que eu comentei: o infinito no finito, ou seja, infinitas manifestações fenomenológicas coextensas a uma razão-de-ser finita. Entende?
Agora, dizer isso não significa dizer que o mundo está imune ao homem. Nós interferimos nele tanto simbolicamente como concretamente.
Para mim, o fato das relações serem efêmeras não quer dizer que não existiram, que não foram reais enquanto estavam acontecendo.
Concordo plenamente. Aliás, eu acredito que o que existe de mais real para nós são essas coisas que se arrastam pelas bordas do instante. As relações sociais são extremamente reais no sentido de que elas podem desaparecer no limite do momento, mas elas têm um grande peso na maneira como veremos o mundo posteriormente.
Uma que se ‘o homem’ pode mesmo, através das suas relações, interferir sobre a realidade - quer dizer, se a história é ‘dos seres humanos-, isso significa que, mesmo que as relações sejam um acontecimento efêmero, elas implicam pressupostos e conseqüências que as ligam a outros momentos do tempo e a outros espaços diferentes daqueles nos quais aconteceram, independentemente da consciência ou da memória humana, seja dos que participam daquelas relações ou não. Com isso não quero dizer que as narrativas e seus significados não sejam um produto da nossa consciência reflexiva, mas que entendo que, num momento ainda anterior a essa consciência, os instantes interconectam-se uns aos outros através dos pressupostos e conseqüências ou efeitos das relações, pois mesmo que elas tenham, necessária e essencialmente, um componente subjetivo, isso não implica uma plena consciência do seu sujeito ou do seu observador sobre a mesma.
Nenhum homem é uma ilha. Por isso não gosto do conceito de indivíduo. Conectamo-nos a outros espaços e a outros tempos históricos sim, mas não de uma maneira transcendental; o elemento dialético faz com que a resignificação seja constante, ou seja, no momento em que eu olho para o mundo, o olhar que eu lanço para ele é o da tradição. Mas, mais uma vez, tal conexão está dentro de nós: não está em um 'espírito da história'. Por isso não concordo quando você diz que isso não implica em plena consciência do sujeito. Implica sim, afinal toda ação é uma ação crítica (não no sentido analítico, mas no sentido de não olhar neutramente para as coisas). Talvez não percebamos, mas a consciência trabalha incessantemente: como disse o Sartre, não existe consciência sem a consciência de que ela existe.
Mas eu acho que o você quis dizer é que nós talvez não saibamos, mas estamos inseridos em algo maior do que nós mesmos: um processo histórico. Bem, com relação a isso eu tenho muitas ressalvas. Acho que esse 'algo maior' seja também um recurso analítico do qual o pesquisador lança mão. É lógico que em qualquer sociedade há uma rede complexa de relações sobre as quais as ações dos sujeitos têm uma conseqüência; mas elas só têm uma conseqüência porque há pessoas envolvidas nesse processo. Mais uma vez temos que ter o cuidado de não atribuir a um efeito o estatuto de causa.
E, por fim, eu não acredito nessa separação entre relações sociais e relações pessoais. Podemos até separá-las na hora de uma análise, mas elas são a mesma coisa: e, no fundo, é isso que é bonito nas Ciências Sociais.
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Bárbara
Bier!
Fiquei incomodadíssima com esse texto! Não podia perder meu posto de chata e deixar de comentar.
Como assim, a história se realiza no momento e as relações sociais se reproduzem no plano das idéias?
Sartre é um defensor feroz do materialismo histórico e do pouco que eu entendo, está longe dele acreditar que não haja nada externo que faça os homens fazer história...
Aí é importante sacar o diálogo filosófico: com quem ele está falando e o que é o projeto existencialista sartriano? é um resgate do marxismo que, na experiência histórica (e aqui, ação não vem separada de construção teórica) separou ser e saber, teoria e prática...
Quando ele fala da consciência, apenas diz que ela é formada pela experiência. E essa não é desinvestida de materialidade (é pura materialidade).
Mas essa é apenas a razão. O problema é a passagem do mundo kantiano para o hegeliano: como resolver o problmea da ação?
Aí é que vem o lance do indivíduo na história e o seu resgate, já que o economicismo o tinha relegado a um milésimo plano. Mas o foco no subjetivismo e a recusa ao objetivismo vem não para instituir um reino de liberdade plena de escolhas.
O lance é que o indivíduo, para Sartre, não reconhece o resultado de sua ação porque ela se dilui no todo: a objetivação da sua subjetividade torna-se alienada. E ele só age com a finalidade de suprir alguma ausência (daí a idéia de projeto). Como todos agem ao mesmo tempo, os projetos individuais entram em choque e foram um todo que age contra o indivíduo e limita a sua ação(estrutura-viva).
No fim das contas, o que quero dizer é que Sartre não nega a materialidade (é ela quem constitui a consciência dos indivíduos, através da experiência); nem a influência de uma exterioridade no 'fazer' história dos indivíduos: se eles têm liberdade de escolha, esta liberdade se dá em um campo de possíveis já dado, porque construído historicamente(mesma idéia do Marx em 18 de brumário); nem a inexistência de relações sociais pautadas por uma materialidade.
Acho preocupante relegar esta última (relações sociais) ao universo das idéias (estou radicalizando seu argumento). Para mim, fica parecendo que você acabou comprando a idéia que Sartre queria negar.
Minha provocação: por que ler o Sartre com a chave do Geertz se o seu instrumental é marxista e Husserliano?
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Felipe
Bárbara, em primeiro lugar seria importante ressaltar que o que eu quis fazer aqui não é um resumo do existencialismo do Sartre. São apenas idéias minhas que, em grande parte, têm sido influenciadas pelas leituras que eu tenho feito. Aliás, eu admito que são leituras limitadas, já que eu nem cheguei a pôr em mãos algo mais denso que Sartre tenha escrito posteriormente ao "Ser e o Nada". De tal forma, não sei como ele faz essa união com o materialismo histórico (que só é feita posteriormente. Como você bem disse, é preciso sacar em que ponto da obra do Sartre eu estou tocando).
Quando ele fala da consciência, apenas diz que ela é formada pela experiência. E essa não é desinvestida de materialidade (é pura materialidade).
Foi exatamente isso que quis dizer! Ela é pura experiência e pura dialética na medida em que toda a sua intenção está voltada em apreender o mundo em seu sentido mais amplo.
O lance é que o indivíduo, para Sartre, não reconhece o resultado de sua ação porque ela se dilui no todo: a objetivação da sua subjetividade torna-se alienada. E ele só age com a finalidade de suprir alguma ausência (daí a idéia de projeto). Como todos agem ao mesmo tempo, os projetos individuais entram em choque e foram um todo que age contra o indivíduo e limita a sua ação(estrutura-viva).
No fim das contas, o que quero dizer é que Sartre não nega a materialidade (é ela quem constitui a consciência dos indivíduos, através da experiência); nem a influência de uma exterioridade no 'fazer' história dos indivíduos: se eles têm liberdade de escolha, esta liberdade se dá em um campo de possíveis já dado, porque construído historicamente(mesma idéia do Marx em 18 de brumário); nem a inexistência de relações sociais pautadas por uma materialidade.
Em nenhum momento eu disse que o espectro de decisões e as liberdades dos sujeitos eram ilimitados. Só quero afirmar que os sujeitos fazem sim escolhas e que há agência no mundo social. Agora, se você diz que Sartre coloca que as relações sociais são pautadas por uma materialidade, eu pediria que você explicitasse o que ele entende por 'materialidade'.
Por fim, não estou relegando as relações sociais ao mundo das idéias. Estou dizendo que as relações sociais em si são efêmeras porque existem apenas no limite do instante (em forma de experiência). No entanto essas experiências sociais constituem a maneira como os homens vêem o mundo e encaram as experiências seguintes, tendo assim, uma textura muito bem definida e cores que não desbotam facilmente. A narrativa histórica, portanto, não deve ser relegada a um 'espírito da história', 'modo de produção' ou a qualquer coisa que seja externa aos sujeitos. Quem constrói as experiências são esses sujeitos, assim como são eles mesmos que dizem qual deve ser a história a ser contada.
A minha briga, na verdade, é contra uma leitura marxista que enxerga nas complexas redes de relações entre os homens o substrato de uma metafísica social. Encaram-se, assim, forças sociais abstratas - que deveriam servir apenas analiticamente - como parte constitutiva deste mundo ideal com estatuto de concreto.
E respondendo à sua provocação: "por que ler o Sartre com a chave do Geertz se o seu instrumental é marxista e Husserliano?"
Ora - provocando novamente - exatamente porque eu não encaro as teorias como religião... hehe
Acordei-me de um sono muito estranho, um sono de... séculos. O quarto estava bem mais escuro do que o normal e, estranhamente, não ouvia qualquer barulho: nem mesmo o habitual cri-cri-car dos grilos ou o movimento sofrível do pequeno ventilador. A casa estava tomada por um silêncio absoluto, e tal silêncio conspirava contra a minha vontade de tomar consciência do meu corpo e levantar em busca de um copo de água. Parecia-me que a dimensão dos sonhos ainda me empurrava violentamente contra a cama, como mil exércitos pressionando-me para dentro de mim.
Eram as horas mortas da madrugada, certamente. Horas para as quais a ciência e a lógica fechavam as pálpebras, com medo dos mistérios que podiam fitar-lhe os olhos. Um olhar que, por conter tanta verdade, assustaria qualquer um. Acredito que todos nós já nos deparamos com tais horas durante o nosso sono, mas – espertamente – voltamos à condição segura do inconsciente e do ego. Eu gostaria muito que não tivesse visto o que vi, que tivesse virado para o lado e voltado a dormir. No entanto, a sede era demais, uma sede extra-humana.
Como num salto a um abismo, meus membros voltaram a si e senti-me restituído. Um alívio. Uma falsa sensação de controle sobre as horas mortas. Lentamente, coloquei os dois pés no chão, ao mesmo tempo. Esfreguei o rosto: meus olhos ardiam a secura. Finalmente os abri conscientemente, e o que vi foi o silêncio preenchendo o quarto como um éter – fluido e, por isso, amedrontador. Levantei-me e, lutando contra a escuridão, andei lentamente, apalpando os objetos
No corredor, as janelas traziam a luz pálida da lua. “Devem ser quatro da manhã”, pensei. Olhei para o meu relógio de pulso e ele não estava lá. Tentei recorrer à memória: “eu tirei o relógio antes de dormir?”. Não me lembrava. Em verdade, não me lembrava de ter ido dormir. Fatos desconexos me vieram à mente, não sabia dizer se havia sido um sonho. Entretanto, uma memória que me escapava era a de ter-me deitado naquela noite. Parecia que eu dormia havia séculos...
Ao final do corredor, havia a porta para a cozinha à direita e a entrada para uma sala ampla à esquerda. Andei cuidadosamente, tentando não chamar a atenção para os meus passos. Tarefa difícil: a cada um deles, a madeira no chão estalava e rangia, quebrando o silêncio (ou, quem sabe, corroborando com ele). No final do corredor, virei à direita. Novamente tentei acender a luz, mas nada funcionava: “Estamos sem energia”. Encontrar o velho filtro de barro repleto de água foi como abraçar um irmão: senti-me em casa novamente. Aquela água descia a minha garganta completando-me existencialmente. Senti minhas formas completarem-se novamente. Sentia com clareza meus braços, meus dedos, meu pé - descalço tocando o chão frio. Sentia-me inteiro.
Havia perdido o sono. Na verdade, nunca o tive. No entanto, minha cabeça doía e meus olhos ardiam o cansaço. Meu corpo não. Dirigi-me à sala, onde havia uma grande janela com vista para o quintal. Olhei através dela e vi formas estranhas no jardim: talvez fosse o efeito da escassa luz, não sei. Mas algo parecia estranho: ele estava maior, mais comprido. Ao fundo, a mangueira e a amoreira pareciam menores, como eram há muitos anos. Aquela sensação do silêncio como um éter se multiplicava e se intensificava no quintal. Não se tratava mais de um éter fino e meticuloso. O silêncio agora se estendia pesadamente sobre o chão, parecendo uma forte neblina. Mas não havia nada ali; certamente não. Como uma criança, abri a janela e sentei no parapeito, olhando de volta para a sala. A mesa de jantar, o piano, o grande relógio ao lado da cristaleira... Tudo em seu exato lugar. Quando percorria o espaço com os olhos, meu peito apertou-se subitamente: “O espelho!”.
O espelho! Ao lado da cristaleira, o espelho! Havia um grande e grave pano branco cobrindo-o. A neblina silenciosa, que antes tomava conta do quintal, entrava pela janela que eu havia aberto. Sentia-a nas costas, passando por entre meus dedos que se apoiavam no parapeito. Sentia seu frescor gélido de horas mortas da madrugada. A neblina se tornara tão pesada... Parecendo um grande rio passando por mim, um rio de águas densas, longe da nascente.
O espelho... Levantei-me e andei ao seu encontro. Meu coração gritava uma angústia tão forte, novamente não me sentia mais inteiro. Sentia que meu corpo se espalhava por toda a sala. Esta, por sua vez, tomava uma dimensão universal e transcendente. Sentia minha mão direita tremendo ao estendê-la em direção ao pano. Fechei os olhos e puxei-o, revelando a face espelhada. Nesse instante, percebi a verdade sobre as horas mortas da madrugada. Percebi que não se tratava de um tempo como o conhecemos: tratava-se de um instante apenas. Um instante no qual o silêncio era o espaço e a consciência era a sua terceira dimensão. A consciência.
Olhei-me no espelho. Certamente o que vi não é algo que se vê normalmente quando se encara o próprio reflexo. A imagem tinha vida, lutava contra mim. Senti a mesma sensação de quando se luta para acordar: tomada de consciência. Com muita força, consegui dirigir meu olhar para os meus próprios olhos... Assim como quando se vira um microfone para uma caixa de som, a imagem amplificou-se numa microfonia absurdamente alta. Percebi, então, que meu corpo se ampliava em tal microfonia, formando uma rede branca em volta de mim; uma rede que aumentava de tamanho, concentrava seus nós e depois se expandia novamente.
Lembranças, lembranças, lembranças... A angústia, que antes era predominante, dava lugar, se desfazia, sintetizava-se na suavidade que, de alguma forma, preenchia de maneira muito mais concreta os espaços. Ela não entrava sorrateiramente por entre as frestas. Ela tinha a dimensão eterna e infinitamente acolhedora de uma terna recordação: o poder explicativo das metáforas, o rico saber de uma seqüência de acordes que o acompanhou por toda a vida. O piano. A madeira: cheiro e cores. A cristaleira. A mangueira. O quintal, amplo como o mundo. Uma cena de filme, uma risada. Era essa a dimensão da consciência, que transcendia o tempo e o espaço da sala. Transcendia o silêncio, era mais do que ele.
A imagem no espelho se perdeu, assim como o meu próprio corpo. Restou-me a consciência, que não mais tentava abarcar o mundo, mas sim era parte dele.