Caio Prado Jr., em Evolução Política do Brasil e outros estudos, coloca de forma categórica: “A transferência da Corte constituiu praticamente a realização da nossa Independência” (PRADO JR, p.43, 1979). Tal asserção, entendida de modo estreito, pode ser tida como um contra-senso cronológico, afinal a emancipação política do Brasil só seria levada a cabo catorze anos depois da chegada da família real portuguesa. Mas de fato a intenção de Caio Prado é marcar de maneira sólida sua posição teórica, e conseqüentemente sua abordagem historiográfica, frente à forma tradicional com a qual os historiadores interpretavam a história. Sua tentativa de deslocar a análise da superfície dos fatos históricos – na qual prevaleciam a vontade e a ação de grandes figuras políticas – para as estruturas econômicas e sociais acaba tendo como conseqüência o esvaziamento de fatos históricos antes muito valorizados, como a Independência em 1822.
Com efeito, Caio Prado situa a emancipação do Brasil e das colônias espanholas da América em meio a um contexto de transformações históricas profundas: a saber, a emergência do capitalismo industrial teria tornado anacrônicas as estruturas de dominação e exploração coloniais. Todavia, ao marcar as diferenças entre esses diversos processos de apartamento do jugo colonial, Caio Prado ressalta a especificidade da emancipação brasileira. Como coloca o autor: “Mas, enquanto nas demais [colônias] a separação é violenta e se resolve nos campos de batalha, no Brasil é o próprio governo metropolitano [...] quem vai paradoxalmente lançar as bases da autonomia brasileira” (PRADO JR, p.42, 1979). Deriva-se deste raciocínio a importância da chegada da Corte portuguesa a terras brasileiras em 1808. Muito mais do que uma simples fuga da conturbada situação política européia do momento, o cruzar o atlântico rumo ao Rio de Janeiro pode ser entendido como uma hábil manobra da diplomacia britânica para atacar o cerne do pacto colonial e abrir caminho para o comércio inglês. De fato, “para o industrial [...] só pode haver um ideal: é um comércio absolutamente livre que estabeleça o maior intercâmbio possível, seja por quem for, nacional ou estrangeiro, entre sua produção e os mercados mundiais” (PRADO JR, p.122, 1969). O fim do monopólio comercial português declamaria necessariamente o término da relação entre metrópole e colônia: com a abertura dos portos, rompe-se com o privilégio lusitano de se colocar como intermediário das relações mercantis do Brasil com o resto do mundo. A queda dos sistemas de restrições econômicas aliada à sedimentação das bases estatais em terras americanas fariam emergir contradições que colocariam em xeque as estruturas coloniais e preparariam, então, o terreno para a transformação da colônia em nação.
domingo, 28 de setembro de 2008
Se Caio Prado busca explicações que colocam as transformações políticas em direta relação com as contradições históricas, espera-se que o autor não deixe de lado as disputas pela retomada de poder por parte dos portugueses que, antes das “interferências” inglesas, usufruíam dos benefícios legados pela estrutura de dominação colonial. De um lado, como resultado da perda do monopólio comercial, ter-se-ia, em Portugal, o esvaziamento de produtos brasileiros, o que, para Caio Prado, teria levado o Reino “a uma situação econômica desesperadora” (PRADO JR, p.44-45, 1979). De outro, haveria uma grande parcela de comerciantes portugueses enraizados no Brasil que haviam perdido muito com as políticas de Dom João e com a concorrência de comerciantes estrangeiros. É desta forma que Caio Prado oferece uma explicação ao movimento constitucional do Porto: contra a “marcha da história”, tanto os portugueses em Portugal, como os portugueses no Brasil veriam na mobilização em torno da constituição – que tinha como horizonte a recondução do Brasil à posição de colônia – um sopro de esperança. Ora, colocadas as contradições em torno das estruturas de dominação, era de se esperar que viessem à tona as tensões entre camadas sociais antagônicas: nas palavras de Caio Prado, “o país entra em ebulição” (Idem, p.46).
O autor reconhece uma multiplicidade de forças e interesses que se manifestam nesse contexto – desde forças reacionárias; passando por grupos que tinham em vista a manutenção, através de um regime constitucional, dos privilégios obtidos desde 1808; até forças populares, que viam na constituição uma perspectiva de libertação da exploração colonial. Mas, como o rompimento de Portugal havia se dado sobre as bases lançadas pela própria metrópole – o que acabaria diferenciando a independência brasileira das demais colônias americanas -, tal ebulição popular não conseguiu levar adiante as reivindicações da maior parte da população. Desta forma, o movimento que culminou com a Independência em 1822 geraria uma disputa polarizada: de um lado, haveria o chamado ‘Partido português’, que se erigia como a incorporação dos desejos lusos pela recolonização; do outro, se colocaria o ‘Partido brasileiro’, que representaria as classes superiores da colônia – ou seja, a elite proprietária de terra. Sobre o processo de libertação do jugo colonial, Caio Prado diz:
“A reação recolonizadora, embora contando com o apoio da metrópole e das cortes portuguesas, será levada de vencida porque não era mais possível deter o curso da História. A isto se opunha o conjunto do país, cuja própria subsistência [...] se tornara incompatível com os estreitos quadros do antigo e já superado regime de colônia” (Idem, p.46)
Neste ponto se colocam algumas questões historiográficas importantes. Para Sérgio Buarque de Holanda, reflexões acerca do grande peso colocado sobre os ombros do Brasil pelo sistema colonial, antes de 1808, eram restritas a uma camada muito rala da população. Ou seja, o questionamento que surge é o seguinte: até que ponto o anti-lusitanismo e a distinção clara de interesses brasileiros e portugueses se colocavam dentro de um projeto orgânico de emancipação? Em que medida, portanto, a revolução constitucionalista do Porto fora encarada como antibrasileira – ou seja, de que forma o liberalismo, tomado como prerrogativa da revolta lusitana, mostrara sua dupla face? Como coloca Sérgio Buarque: “Os clamores cada vez mais estridentes do lado europeu contra tudo o que tenda a entorpecer a obra comum, e contra toda autoridade cujos privilégios não emanem de um claro mandato do povo [...] ecoam entre nós, bem ou mal, como se quisessem pura e simplesmente a restauração do estatuto colonial” (HOLANDA, p.14, 1976). Não é de se espantar, portanto, que surjam alianças a contrapelo de posições ideológicas díspares: é desta forma que os adeptos do absolutismo em Portugal acabam se juntando ao movimento que acabará por levar à Independência. Contrariando a noção da colônia que, ao tomar consciência de sua posição subjugada, rompe os grilhões que a ligam à metrópole, Sérgio Buarque demonstra que as disputas em torno da independência são fundamentalmente frutos de dissensões entre portugueses: ao contrário do que coloca Caio Prado, não teria sido legado o papel de tomar as rédeas do processo de constituição de uma Nação unificada por trás do movimento de emancipação política ao ‘Partido brasileiro’. De fato, como também apontará Gladys Ribeiro, a construção do antagonismo de nacionalidades entre portugueses e brasileiros, assim como o próprio processo de unificação política em torno da nova Nação, serão posteriores ao sete de setembro de 1822:
“é inegável que a presença portuguesa foi insistentemente encarada, entre numerosos brasileiros, como um perigo mortal para liberdades nascentes e mal seguras. Sobretudo quando esse perigo pareceu encarnar-se na pessoa de seu próprio Imperador e ‘defensor perpétuo’. Não é demasiado pretender, assim, que o longo processo de emancipação terá seu desfecho iniludível com o 7 de abril” (HOLANDA, p.15, 1976)
O problema da construção da identidade brasileira pós 1822 está no cerne das preocupações de Gladys Ribeiro. É possível dizer que o esforço que perpassa seu texto é o de dar à constituição do que é ‘ser brasileiro’ o caráter construído e livre de determinações muito amplas: a autora retira das representações em torno das identidades, assim como do que tradicionalmente se entendeu, na historiografia, por “constitucionalismo” e “independência”, qualquer espécie de essência que seria atualizada ou por eventos político-econômicos externos, ou pela vontade de personagens políticos. Com efeito, como diz a autora:
“A ‘identidade’ surgiria, então, como fruto dos embates sociais, podendo ter múltiplos sentidos, de acordo com os momentos e os agentes sociais envolvidos. Não se trata de procurar uma única identidade, com elementos comuns e homogêneos, sim diferentes maneiras de ‘ser brasileiro’ e de ‘ser português’ ao longo do período” (RIBEIRO, p.28, 2002)
Já que os embates discursivos “construíam a realidade e eram construídos por ela” (Idem, p.29), os jornais e folhetos do início do século XIX são fontes essenciais para se entender de que maneira os indivíduos reelaboram a cultura e interpretam os momentos históricos de acordo com a posição que ocupam em um conjunto de relações. A revolução constitucional do Porto acaba ganhando importância na análise de Gladys não pelo que há nela de efeito, mas no que lhe há de causa. Ou seja, colocada a crise em torno da volta de Dom João VI, da escritura de uma constituição que poderia marcar mudanças profundas nas relações entre Brasil e Portugal, torna-se necessário o exame das interpretações e deslizes semânticos dos termos em discussão. Segundo a autora, o debate em torno da palavra ‘liberdade’ acompanhou o desenrolar do movimento encabeçado pela cidade do Porto. Ainda que tal movimento pressupusesse a volta do Rei a Portugal e uma ‘re-inversão’ das relações entre metrópole e colônia, “todos os grupos ou ‘facções’ eram unânimes nos bons propósitos de organização da Nação portuguesa ao redor de leis básicas e promotoras da liberdade do indivíduo” (Idem, p.30). Com efeito, Gladys demonstra que, apesar das dissensões em torno da organização política deste novo reino – a saber, o interesse preponderante por parte dos portugueses europeus em transformar o Brasil em província e as aspirações brasileiras, capitaneadas por São Paulo, em fazer do Brasil outro reino federado em torno da coroa –, não se cogitava, por nenhuma das partes, a separação política completa: tal hipótese figurava mais como ‘blefe’ do que uma proposta sólida levada a cabo por um grupo político organizado.
O autor reconhece uma multiplicidade de forças e interesses que se manifestam nesse contexto – desde forças reacionárias; passando por grupos que tinham em vista a manutenção, através de um regime constitucional, dos privilégios obtidos desde 1808; até forças populares, que viam na constituição uma perspectiva de libertação da exploração colonial. Mas, como o rompimento de Portugal havia se dado sobre as bases lançadas pela própria metrópole – o que acabaria diferenciando a independência brasileira das demais colônias americanas -, tal ebulição popular não conseguiu levar adiante as reivindicações da maior parte da população. Desta forma, o movimento que culminou com a Independência em 1822 geraria uma disputa polarizada: de um lado, haveria o chamado ‘Partido português’, que se erigia como a incorporação dos desejos lusos pela recolonização; do outro, se colocaria o ‘Partido brasileiro’, que representaria as classes superiores da colônia – ou seja, a elite proprietária de terra. Sobre o processo de libertação do jugo colonial, Caio Prado diz:
“A reação recolonizadora, embora contando com o apoio da metrópole e das cortes portuguesas, será levada de vencida porque não era mais possível deter o curso da História. A isto se opunha o conjunto do país, cuja própria subsistência [...] se tornara incompatível com os estreitos quadros do antigo e já superado regime de colônia” (Idem, p.46)
Neste ponto se colocam algumas questões historiográficas importantes. Para Sérgio Buarque de Holanda, reflexões acerca do grande peso colocado sobre os ombros do Brasil pelo sistema colonial, antes de 1808, eram restritas a uma camada muito rala da população. Ou seja, o questionamento que surge é o seguinte: até que ponto o anti-lusitanismo e a distinção clara de interesses brasileiros e portugueses se colocavam dentro de um projeto orgânico de emancipação? Em que medida, portanto, a revolução constitucionalista do Porto fora encarada como antibrasileira – ou seja, de que forma o liberalismo, tomado como prerrogativa da revolta lusitana, mostrara sua dupla face? Como coloca Sérgio Buarque: “Os clamores cada vez mais estridentes do lado europeu contra tudo o que tenda a entorpecer a obra comum, e contra toda autoridade cujos privilégios não emanem de um claro mandato do povo [...] ecoam entre nós, bem ou mal, como se quisessem pura e simplesmente a restauração do estatuto colonial” (HOLANDA, p.14, 1976). Não é de se espantar, portanto, que surjam alianças a contrapelo de posições ideológicas díspares: é desta forma que os adeptos do absolutismo em Portugal acabam se juntando ao movimento que acabará por levar à Independência. Contrariando a noção da colônia que, ao tomar consciência de sua posição subjugada, rompe os grilhões que a ligam à metrópole, Sérgio Buarque demonstra que as disputas em torno da independência são fundamentalmente frutos de dissensões entre portugueses: ao contrário do que coloca Caio Prado, não teria sido legado o papel de tomar as rédeas do processo de constituição de uma Nação unificada por trás do movimento de emancipação política ao ‘Partido brasileiro’. De fato, como também apontará Gladys Ribeiro, a construção do antagonismo de nacionalidades entre portugueses e brasileiros, assim como o próprio processo de unificação política em torno da nova Nação, serão posteriores ao sete de setembro de 1822:
“é inegável que a presença portuguesa foi insistentemente encarada, entre numerosos brasileiros, como um perigo mortal para liberdades nascentes e mal seguras. Sobretudo quando esse perigo pareceu encarnar-se na pessoa de seu próprio Imperador e ‘defensor perpétuo’. Não é demasiado pretender, assim, que o longo processo de emancipação terá seu desfecho iniludível com o 7 de abril” (HOLANDA, p.15, 1976)
O problema da construção da identidade brasileira pós 1822 está no cerne das preocupações de Gladys Ribeiro. É possível dizer que o esforço que perpassa seu texto é o de dar à constituição do que é ‘ser brasileiro’ o caráter construído e livre de determinações muito amplas: a autora retira das representações em torno das identidades, assim como do que tradicionalmente se entendeu, na historiografia, por “constitucionalismo” e “independência”, qualquer espécie de essência que seria atualizada ou por eventos político-econômicos externos, ou pela vontade de personagens políticos. Com efeito, como diz a autora:
“A ‘identidade’ surgiria, então, como fruto dos embates sociais, podendo ter múltiplos sentidos, de acordo com os momentos e os agentes sociais envolvidos. Não se trata de procurar uma única identidade, com elementos comuns e homogêneos, sim diferentes maneiras de ‘ser brasileiro’ e de ‘ser português’ ao longo do período” (RIBEIRO, p.28, 2002)
Já que os embates discursivos “construíam a realidade e eram construídos por ela” (Idem, p.29), os jornais e folhetos do início do século XIX são fontes essenciais para se entender de que maneira os indivíduos reelaboram a cultura e interpretam os momentos históricos de acordo com a posição que ocupam em um conjunto de relações. A revolução constitucional do Porto acaba ganhando importância na análise de Gladys não pelo que há nela de efeito, mas no que lhe há de causa. Ou seja, colocada a crise em torno da volta de Dom João VI, da escritura de uma constituição que poderia marcar mudanças profundas nas relações entre Brasil e Portugal, torna-se necessário o exame das interpretações e deslizes semânticos dos termos em discussão. Segundo a autora, o debate em torno da palavra ‘liberdade’ acompanhou o desenrolar do movimento encabeçado pela cidade do Porto. Ainda que tal movimento pressupusesse a volta do Rei a Portugal e uma ‘re-inversão’ das relações entre metrópole e colônia, “todos os grupos ou ‘facções’ eram unânimes nos bons propósitos de organização da Nação portuguesa ao redor de leis básicas e promotoras da liberdade do indivíduo” (Idem, p.30). Com efeito, Gladys demonstra que, apesar das dissensões em torno da organização política deste novo reino – a saber, o interesse preponderante por parte dos portugueses europeus em transformar o Brasil em província e as aspirações brasileiras, capitaneadas por São Paulo, em fazer do Brasil outro reino federado em torno da coroa –, não se cogitava, por nenhuma das partes, a separação política completa: tal hipótese figurava mais como ‘blefe’ do que uma proposta sólida levada a cabo por um grupo político organizado.
O que a contextualização dos embates discursivos acaba demonstrando é que, primordialmente, se falava em emancipação com o intuito de preservar a unidade do Império: a leitura documental aliada à concepção exageradamente ampla de ‘crise do sistema colonial’ poderiam “ter levado alguns historiadores a marcar o ano da abertura dos portos como o do início do processo de Emancipação política, como se esta fosse a lógica ‘natural’ dos fatos ou como se a Independência fosse desejada ou planejada maquiavelicamente há muito, minimamente desde 1808...” (RIBEIRO, p.45, 2002). A crítica velada a Caio Prado, que neste trecho emerge muito claramente, parece recair sobre a excessiva importância que o historiador teria dado a um quadro explicativo assentado sobre um plano de acontecimentos muito geral: a saber, o enfoque demasiadamente europeizante teria criado uma distorção no entendimento do processo de independência. Nas palavras de Maria Odila, tal perspectiva “contribuiu decisivamente para o apego à imagem da colônia em luta contra a metrópole, deixando em esquecimento o processo interno de ajustamento às mesmas pressões, que é o de enraizamento de interesses portugueses e sobretudo o processo de interiorização da metrópole no centro-sul da colônia” (DIAS, p.12, 2005). Em concordância com Caio Prado, Maria Odila coloca que o ano de 1808 tem uma grande importância para a ruptura de antigas estruturas políticas; entretanto, tal descompasso não estaria inserido em um ‘curso da História’: exatamente porque a independência já era fato consumado após 1808 que não é possível pensar os eventos de 1822 como algo inevitável. Ao contrário, tornar-se-ia necessário entender o processo de emancipação política e da construção do Estado em torno do Império como engendramentos de determinações históricas mais sutis.
Como coloca Gladys, o ‘Partido brasileiro’ “seria um ‘saco de gatos’, cujas disputas pelo poder começaram a ocorrer antes mesmo da Emancipação ser vista como separação política total dos reinos” (RIBEIRO, p.40, 2002). Da mesma forma fluida se constituiria o ‘Partido português’: não se colocava um antagonismo claro entre portugueses no Brasil e brasileiros, afinal “todos fariam parte de uma única família” (Idem, p.31). O que se coloca é que “Se o local de nascimento dava a diferença, atenuada pelo parentesco e pelos laços religiosos, isto não era tudo. As ligações econômicas eram os mais importantes ‘vínculos’. Elas cimentavam a união de interesses entre os ‘compatriotas’, que deveriam ser representados nas Cortes” (Idem, p.32). Ou seja, não só não havia um consenso em torno do que seria o ‘brasileiro’ e o ‘português’, afinal todos seriam filhos da pátria lusa, como não também não haveria uma união de interesses dos portugueses em Portugal e portugueses no Brasil, uma vez que os negociantes portugueses haviam enraizado seus negócios na colônia, enquanto que os comerciantes do Porto e de Lisboa haviam sido demasiadamente prejudicados pelos tratados de 1808 e 1810.
Certamente as proposições de Gladys parecem ir de encontro ao cerne do argumento de Maria Odila. No entanto, na nota 59 de seu texto, ela diz:
“Não quero minimizar a importância dos tratados para o desenvolvimento do comércio brasileiro na época. Só não quero que a emancipação [...] seja confundida com o desejo de separação total. Maria Odila Silva Dias é uma das historiadoras que dá grande ênfase a 1808, embora esvazie 1822 como o marco para o início da consolidação da unidade nacional, desvincule a data do quadro de luta da Colônia versus Metrópole e retire o caráter nacionalista do movimento” (RIBEIRO, p.116-117, 2002)
Este excerto é bastante revelador para a compreensão da discussão historiográfica que há como pano de fundo da análise de Gladys sobre o processo de Independência. É certo que a autora não nega a importância da vinda da Corte a terras brasileiras: Gladys tem razão quando afirma que não havia um plano maquiavelicamente traçado desde 1808 e que, portanto – retomando a argumentação de Sérgio Buarque e Maria Odila – as rédeas da Independência não foram tomadas por uma classe que tinha interesses definidos – como propunha Caio Prado ao tratar das forças em embate. Ou seja, seria precipitado dizer que o ‘Partido português’, por estar remando contra a maré da História, estava desde o início fadado ao fracasso. A análise dos jornais e folhetos da época mostra que a Independência era coisa incerta mesmo depois de sete de setembro. Da mesma maneira, foi necessário um grande esforço político para criar uma noção de brasilidade em contraposição à ameaça portuguesa de reunião dos Reinos sob uma única Coroa. No entanto, com o intuito de refutar qualquer concepção teleológica da História e de posicionar a construção de identidades como fruto de um sistema de relações, a autora necessariamente acaba dando demasiada importância aos debates e discursos que aconteciam no ‘calor da hora’, esvaziando, assim, a noções de movimento e sujeitos históricos. Ao tentar dar historicidade à proposição de Eni Orlandi, que figura logo no início de seu texto, Gladys rejeita a idéia de que discursos produzem seus significados de acordo com suas contraposições internas. Todavia, ao abandonar as explicações de cunho estrutural e ao afirmar que os discursos moldam a realidade e são moldados por ela, a autora acaba tendo que reduzir o movimento de independência a um embate discursivo catalisado por acontecimentos políticos. Ou seja: o movimento constitucional do Porto lançaria a fagulha necessária para que os debates em torno das condições de colônia e metrópole se iniciassem. Como resultado destes embates, a separação total entre Brasil e Portugal teria se dado no ‘calor da hora’ e seria necessário que se reunissem esforços para “convencer o Povo e a plebe de que [o Grito do Ipiranga] havia sido bem pensado e teria sido fruto da justiça e da razão”. Ou seja, se por um lado Gladys nega que haveria um plano conscientemente traçado para a Independência desde 1808, por outro ela admite que, dada a separação, seria necessário esboçar ativamente a noção de uma Nação que ali nascia.
De certa forma, a análise de Caio Prado, ao se focar no entrelaçamento dos movimentos econômicos e políticos, tem a vantagem de evidenciar que a maneira como os homens se engajam e se posicionam ativamente frente às estruturas sociais cria condições de ação que são mais ou menos determinadas por esse engajamento. Isto é, entendendo o discurso também como uma forma de se posicionar criticamente frente ao mundo, só se pode pensá-lo conjuntamente à posição social ocupada pelo criador do discurso frente às estruturas sociais (que certamente estão além do campo de visão do indivíduo). Se o movimento histórico é extremamente marcado na análise de Caio Prado, é porque ele está sobremaneira preocupado com o olhar sobre as estruturas: de certa forma, não é um absurdo dizer que a Independência já havia acontecido em 1808, uma vez que o enraizamento da Corte no Brasil criaria condições que dificilmente poderiam sofrer um retrocesso. No entanto, torna-se necessário o cuidado maior com os eventos conjunturais para que se torne evidente para o historiador que as pessoas, em suas vivências cotidianas, estão demasiadamente imersas em seus mundos sociais e que, por isso, seus olhares e sua capacidade de ação são necessariamente posicionados – desta forma evita-se que se criem ‘super sujeitos históricos’, incorporados na concepção de classe de Caio Prado, por exemplo. Ora, entretanto, o historiador deve dar um passo além: seu trabalho não deve ser apenas o de se tornar mais um sujeito imerso nos discursos da época – operando de tal maneira que os eventos políticos como a Independência acabem se envolvendo numa neblina analítica da qual é difícil de se desfazer. Não basta, portanto, uma visão ampla sobre a produção discursiva de um período: o historiador necessariamente precisa observar a emergência de tais discursos frente a movimentos históricos mais amplos que o campo de visão dos interpretadores locais. O abismo que se coloca entre o discurso e a prática social, no caso da análise de Gladys, acaba transformando o movimento histórico em algo alheio aos sujeitos: afinal, a eles só é reservada a interpretação polissêmica dos fatos. Sendo assim, no caso da Independência, notar-se-á que ela pode ter sido feita no ‘calor da hora’ para aqueles sujeitos imersos em seus mundos sociais, mas não aos olhos do historiador.
Como coloca Gladys, o ‘Partido brasileiro’ “seria um ‘saco de gatos’, cujas disputas pelo poder começaram a ocorrer antes mesmo da Emancipação ser vista como separação política total dos reinos” (RIBEIRO, p.40, 2002). Da mesma forma fluida se constituiria o ‘Partido português’: não se colocava um antagonismo claro entre portugueses no Brasil e brasileiros, afinal “todos fariam parte de uma única família” (Idem, p.31). O que se coloca é que “Se o local de nascimento dava a diferença, atenuada pelo parentesco e pelos laços religiosos, isto não era tudo. As ligações econômicas eram os mais importantes ‘vínculos’. Elas cimentavam a união de interesses entre os ‘compatriotas’, que deveriam ser representados nas Cortes” (Idem, p.32). Ou seja, não só não havia um consenso em torno do que seria o ‘brasileiro’ e o ‘português’, afinal todos seriam filhos da pátria lusa, como não também não haveria uma união de interesses dos portugueses em Portugal e portugueses no Brasil, uma vez que os negociantes portugueses haviam enraizado seus negócios na colônia, enquanto que os comerciantes do Porto e de Lisboa haviam sido demasiadamente prejudicados pelos tratados de 1808 e 1810.
Certamente as proposições de Gladys parecem ir de encontro ao cerne do argumento de Maria Odila. No entanto, na nota 59 de seu texto, ela diz:
“Não quero minimizar a importância dos tratados para o desenvolvimento do comércio brasileiro na época. Só não quero que a emancipação [...] seja confundida com o desejo de separação total. Maria Odila Silva Dias é uma das historiadoras que dá grande ênfase a 1808, embora esvazie 1822 como o marco para o início da consolidação da unidade nacional, desvincule a data do quadro de luta da Colônia versus Metrópole e retire o caráter nacionalista do movimento” (RIBEIRO, p.116-117, 2002)
Este excerto é bastante revelador para a compreensão da discussão historiográfica que há como pano de fundo da análise de Gladys sobre o processo de Independência. É certo que a autora não nega a importância da vinda da Corte a terras brasileiras: Gladys tem razão quando afirma que não havia um plano maquiavelicamente traçado desde 1808 e que, portanto – retomando a argumentação de Sérgio Buarque e Maria Odila – as rédeas da Independência não foram tomadas por uma classe que tinha interesses definidos – como propunha Caio Prado ao tratar das forças em embate. Ou seja, seria precipitado dizer que o ‘Partido português’, por estar remando contra a maré da História, estava desde o início fadado ao fracasso. A análise dos jornais e folhetos da época mostra que a Independência era coisa incerta mesmo depois de sete de setembro. Da mesma maneira, foi necessário um grande esforço político para criar uma noção de brasilidade em contraposição à ameaça portuguesa de reunião dos Reinos sob uma única Coroa. No entanto, com o intuito de refutar qualquer concepção teleológica da História e de posicionar a construção de identidades como fruto de um sistema de relações, a autora necessariamente acaba dando demasiada importância aos debates e discursos que aconteciam no ‘calor da hora’, esvaziando, assim, a noções de movimento e sujeitos históricos. Ao tentar dar historicidade à proposição de Eni Orlandi, que figura logo no início de seu texto, Gladys rejeita a idéia de que discursos produzem seus significados de acordo com suas contraposições internas. Todavia, ao abandonar as explicações de cunho estrutural e ao afirmar que os discursos moldam a realidade e são moldados por ela, a autora acaba tendo que reduzir o movimento de independência a um embate discursivo catalisado por acontecimentos políticos. Ou seja: o movimento constitucional do Porto lançaria a fagulha necessária para que os debates em torno das condições de colônia e metrópole se iniciassem. Como resultado destes embates, a separação total entre Brasil e Portugal teria se dado no ‘calor da hora’ e seria necessário que se reunissem esforços para “convencer o Povo e a plebe de que [o Grito do Ipiranga] havia sido bem pensado e teria sido fruto da justiça e da razão”. Ou seja, se por um lado Gladys nega que haveria um plano conscientemente traçado para a Independência desde 1808, por outro ela admite que, dada a separação, seria necessário esboçar ativamente a noção de uma Nação que ali nascia.
De certa forma, a análise de Caio Prado, ao se focar no entrelaçamento dos movimentos econômicos e políticos, tem a vantagem de evidenciar que a maneira como os homens se engajam e se posicionam ativamente frente às estruturas sociais cria condições de ação que são mais ou menos determinadas por esse engajamento. Isto é, entendendo o discurso também como uma forma de se posicionar criticamente frente ao mundo, só se pode pensá-lo conjuntamente à posição social ocupada pelo criador do discurso frente às estruturas sociais (que certamente estão além do campo de visão do indivíduo). Se o movimento histórico é extremamente marcado na análise de Caio Prado, é porque ele está sobremaneira preocupado com o olhar sobre as estruturas: de certa forma, não é um absurdo dizer que a Independência já havia acontecido em 1808, uma vez que o enraizamento da Corte no Brasil criaria condições que dificilmente poderiam sofrer um retrocesso. No entanto, torna-se necessário o cuidado maior com os eventos conjunturais para que se torne evidente para o historiador que as pessoas, em suas vivências cotidianas, estão demasiadamente imersas em seus mundos sociais e que, por isso, seus olhares e sua capacidade de ação são necessariamente posicionados – desta forma evita-se que se criem ‘super sujeitos históricos’, incorporados na concepção de classe de Caio Prado, por exemplo. Ora, entretanto, o historiador deve dar um passo além: seu trabalho não deve ser apenas o de se tornar mais um sujeito imerso nos discursos da época – operando de tal maneira que os eventos políticos como a Independência acabem se envolvendo numa neblina analítica da qual é difícil de se desfazer. Não basta, portanto, uma visão ampla sobre a produção discursiva de um período: o historiador necessariamente precisa observar a emergência de tais discursos frente a movimentos históricos mais amplos que o campo de visão dos interpretadores locais. O abismo que se coloca entre o discurso e a prática social, no caso da análise de Gladys, acaba transformando o movimento histórico em algo alheio aos sujeitos: afinal, a eles só é reservada a interpretação polissêmica dos fatos. Sendo assim, no caso da Independência, notar-se-á que ela pode ter sido feita no ‘calor da hora’ para aqueles sujeitos imersos em seus mundos sociais, mas não aos olhos do historiador.
quarta-feira, 25 de junho de 2008
Passagem
Confio na sua capacidade de enganar o tempo;
Como os passos numa tarde sem pretensões,
Como as férias de infância: buraco na temporalidade fragmentada do cotidiano.
Agarro com força na sua cintura,
Quando você tenta avidamente alçar vôo.
Por mais breve que seja, sinto em você a leveza das nuvens
Que passam no céu como pesados navios - de puro aço -, flutando tranqüilos sobre o mar.
Suspiro em meio à sua fragilidade.
Sensibilidade que traz em si todas as canções do mundo:
mesmo aquelas que eu nunca ouvirei, os mais belos hinos cantados,
Murmurados num momento singelo de alegria.
Pesam sobre mim as coisas que deixamos para trás,
todos os dias,
Outonos que perdem suas folhas:
a naturalidade que envolve todos nós.
Creio na memória dos nossos corpos,
das minhas mãos que conhecem as suas:
nossos ossos tão assustados,
nossa carne com tanto medo da solidão.
Passeio pela vida com você,
como notas de piano passeiam sobre a melodia de uma música que é pura cadência.
Nosso lirismo, assim, não se fecha: ele se estende infinitamente, se esparrama em cada dia,
em cada hora, em cada minuto.
Como os passos numa tarde sem pretensões,
Como as férias de infância: buraco na temporalidade fragmentada do cotidiano.
Agarro com força na sua cintura,
Quando você tenta avidamente alçar vôo.
Por mais breve que seja, sinto em você a leveza das nuvens
Que passam no céu como pesados navios - de puro aço -, flutando tranqüilos sobre o mar.
Suspiro em meio à sua fragilidade.
Sensibilidade que traz em si todas as canções do mundo:
mesmo aquelas que eu nunca ouvirei, os mais belos hinos cantados,
Murmurados num momento singelo de alegria.
Pesam sobre mim as coisas que deixamos para trás,
todos os dias,
Outonos que perdem suas folhas:
a naturalidade que envolve todos nós.
Creio na memória dos nossos corpos,
das minhas mãos que conhecem as suas:
nossos ossos tão assustados,
nossa carne com tanto medo da solidão.
Passeio pela vida com você,
como notas de piano passeiam sobre a melodia de uma música que é pura cadência.
Nosso lirismo, assim, não se fecha: ele se estende infinitamente, se esparrama em cada dia,
em cada hora, em cada minuto.
quinta-feira, 19 de junho de 2008
Bypass
Subitamente,
Os riscos amassados numa folha de papel,
Debaixo do meu travesseiro,
Não lhe são mais palavras.
Digo: "Me desculpe, voltarei logo."
Mas as palavras saltam aos olhos:
Como quando uma criança chuta uma pilha de folhas secas,
No mais terno inverno.
O que está plasmado ali - num âmbar em tons de amarelo e azul - é meu corpo,
Vivo e pulsante,
Que implica sobre o papel a pressão necessária para que uma dor seja eterna,
Que uma despedida escorra por entre os lábios,
Que uma plenitude dependa do sangue que é bombado em minhas veias.
Dou adeus como quem escreve um bilhete:
"Já volto".
Um bilhete que carrega meu corpo em seus traços
E que, como ele, é ironicamente levado pelo vento
Para debaixo da porta, ao vão da escada, por entre as almofadas...
Sumo como os traços despretensiosos da minha mão,
Curvada, rápida, desleixada.
No último suspiro do bypass,
Escrevo com meus lábios um bilhete que escapará,
aos poucos,
pelas frestas de sua memória.
Os riscos amassados numa folha de papel,
Debaixo do meu travesseiro,
Não lhe são mais palavras.
Digo: "Me desculpe, voltarei logo."
Mas as palavras saltam aos olhos:
Como quando uma criança chuta uma pilha de folhas secas,
No mais terno inverno.
O que está plasmado ali - num âmbar em tons de amarelo e azul - é meu corpo,
Vivo e pulsante,
Que implica sobre o papel a pressão necessária para que uma dor seja eterna,
Que uma despedida escorra por entre os lábios,
Que uma plenitude dependa do sangue que é bombado em minhas veias.
Dou adeus como quem escreve um bilhete:
"Já volto".
Um bilhete que carrega meu corpo em seus traços
E que, como ele, é ironicamente levado pelo vento
Para debaixo da porta, ao vão da escada, por entre as almofadas...
Sumo como os traços despretensiosos da minha mão,
Curvada, rápida, desleixada.
No último suspiro do bypass,
Escrevo com meus lábios um bilhete que escapará,
aos poucos,
pelas frestas de sua memória.
terça-feira, 13 de maio de 2008
21
Entre o lembrar e o esquecer se coloca um mundo.
--------------------------------------------------
Conto os minutos sabendo que, depois, terei que me embriagar de esquecimento.
Como um menino que - imaginando estar dentro de uma nuvem - tenta agarrar a neblina,
vejo escapar por entre meus dedos a criação continuada: grave consciência.
A ilusão me foge porque repousa na naturalidade dos dias fragmentados,
na certeza que se esvai com o eco das palavras,
no café quimicamente vivo.
Perdi ---
o
----- éter místico ---
---------------------------- que ----------------
envolve e conecta ---
---- as coisas.
E, lá fora,
tenho a impressão de que o mundo suspira,
quando, na verdade,
é apenas o vento.
domingo, 20 de abril de 2008
My Blueberry Nights
Não mais as cicatrizes fundas
Da xilografia estampada na capa de um livro.
Não mais violinos cortantes,
Na complexidade orquestrada por uma mente incansável.
Diante da insensibilidade forçada,
Da suspensão das angústias,
Do momento que antecede o suspiro,
Do pesar dos olhos:
Prefiro a tua delicadeza rouca,
O piano deslizando sobre mim,
Sonhos levemente distorcidos.
Come away with me
In the night.
Na realidade que te cerca,
Numa manhã de Junho:
Como em tantas as outras
- imemoriais -
Pisarei no gelado orvalho,
E lembrarei do teu eterno suspiro...
"What did you say?"
She's so heavy
"É difícil defender, só com palavras, a vida"
Todos os dias, defendo a vida com palavras.
A vida, por sua vez, nada diz.
Vejo, todos os dias, ao fim da tarde, as luzes se apagarem.
Sinto, toda vez que em meu quarto percebo a confortável escuridão ser invadida pela aurora, as horas estilhaçarem minha capacidade de dizer,
em palavras,
o que é a vida.
"É difícil defender, só com palavras, a vida" revela o quadro em minha parede quando nele a luz do dia bate.
Nos bons momentos, sinto que não há nada a ser dito: não são necessárias palavras para simplesmente ver-se diluir no mundo.
Nos maus momentos, torço para que eu encontre algo a dizer. Algo para consolar a dor daqueles que definham e nem sabem.
Pesada é a cruz daqueles que sabem.
Todos os dias, percebo que defender a vida com palavras é necessário. É preciso camuflar a corrosão das horas com signos que balançam no ar até cairem, exaustos, sobre o chão.
Sinto o dizer.
Sinto dizer;
mas, para mim, ela é pesada demais.
quinta-feira, 10 de abril de 2008
Café
Sentado à beira do abismo,
entre a tentativa de um gole no café quente e o zumbido das pessoas que vêm e vão,
mantenho meu corpo em pé,
minha memória intacta,
minha consciência alheia.
Minhas pálpebras, no entanto, tremem a noite passada;
meus dedos mutilam-se impiedosamente,
meus pés contorcem-se às lembranças de pesadelos.
Sopro o café, que embaça meus óculos.
E depois? Qual será a próxima tarefa?
Pagar a conta, sair, chegar, esperar...
Soprar o café só me impede de ver o mundo por alguns segundos.
Quando, por fim, as lentes se desembaçam,
nada consigo ver:
os olhos apontam para mim mesmo.
domingo, 16 de março de 2008
Goeldi
(o sinal passa do verde para o amarelo e, enfim, para o vermelho)
(a avenida vazia é vista em sua profundidade. A rua está molhada de uma garoa que caiu durante toda a noite. As luzes dos postes refletem no chão)
(vê-se o horizonte de prédios com poucas janelas acesas)
(um carro avança o sinal vermelho sem sequer diminuir a velocidade)
(de dentro do carro, olha-se por através do vidro ligeiramente embaçado e com pingos de água. Luzes em branco-amarelado e vermelho compõem a visão desfocada)
(as mãos do passageiro esfregam-se aflitas enquanto que a do motorista descansa sobre o câmbio)
(voz em off enquanto a câmera focaliza de perto o olho cansado do passageiro)
-Navalhadas reluzentes cortam os olhos
Daqueles que a madrugada engole
--------------------------------
(o carro pára no cruzamento de duas avenidas. a cidade está em completo silêncio. tomadas sucessivas distanciam-se do carro colocando-o em perspectiva da grande cidade)
(o sinal abre e o carro volta a andar)
(voz em off enquanto se vê a roda do carro em movimento)
A mente incandescente pede descanso.
Mas o sentido da luz é o centro da consciência...
--------------------------------
(o passageiro olha para fora enquanto luzes passam por seus olhos em uma freqüência definida)
(o passageiro luta para manter seus olhos abertos. Após algumas tentativas, ele sutilmente descansa sua cabeça sobre o vidro. As luzes agora parecem acariciar seus cabelos)
(na avenida, vê-se o carro vindo de longe, aproximando-se. Ele passa e sobra um vazio. Depois de alguns segundos, a voz em off diz:)
O homem só desliza sobre a cidade:
Organismo vivo
Sepulcro de milhares de flashes
Que, como o herói moderno, vivem e morrem
Sem sentido
(a avenida vazia é vista em sua profundidade. A rua está molhada de uma garoa que caiu durante toda a noite. As luzes dos postes refletem no chão)
(vê-se o horizonte de prédios com poucas janelas acesas)
(um carro avança o sinal vermelho sem sequer diminuir a velocidade)
(de dentro do carro, olha-se por através do vidro ligeiramente embaçado e com pingos de água. Luzes em branco-amarelado e vermelho compõem a visão desfocada)
(as mãos do passageiro esfregam-se aflitas enquanto que a do motorista descansa sobre o câmbio)
(voz em off enquanto a câmera focaliza de perto o olho cansado do passageiro)
-Navalhadas reluzentes cortam os olhos
Daqueles que a madrugada engole
--------------------------------
(o carro pára no cruzamento de duas avenidas. a cidade está em completo silêncio. tomadas sucessivas distanciam-se do carro colocando-o em perspectiva da grande cidade)
(o sinal abre e o carro volta a andar)
(voz em off enquanto se vê a roda do carro em movimento)
A mente incandescente pede descanso.
Mas o sentido da luz é o centro da consciência...
--------------------------------
(o passageiro olha para fora enquanto luzes passam por seus olhos em uma freqüência definida)
(o passageiro luta para manter seus olhos abertos. Após algumas tentativas, ele sutilmente descansa sua cabeça sobre o vidro. As luzes agora parecem acariciar seus cabelos)
(na avenida, vê-se o carro vindo de longe, aproximando-se. Ele passa e sobra um vazio. Depois de alguns segundos, a voz em off diz:)
O homem só desliza sobre a cidade:
Organismo vivo
Sepulcro de milhares de flashes
Que, como o herói moderno, vivem e morrem
Sem sentido
Goeldi
Navalhadas reluzentes cortam os olhos
Daqueles que a madrugada engole
--------------------------------
Em suas veias concretas:
O líquido preto e espesso que cobre a terra-natal.
A mente incandescente pede descanso.
Mas o sentido da luz é o centro da consciência...
--------------------------------
Navalhas reluzentes acariciam os cabelos
Prensados contra o vidro.
O homem só desliza sobre a cidade:
Organismo vivo
Sepulcro de milhares de flashes
Que, como o herói moderno, vivem e morrem
Sem sentido.
quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008
sexta-feira, 18 de janeiro de 2008
Ice Dance
Num lugar distante -
tão além -
Convidei-te para dançar,
refratar a luz fria de uma imensidão branca,
em passos improvisados,
sobre as fissuras do mundo de gelo.
Escalando notas, deslizando em sonhos
de quando eras criança
de quando patinavas numa fresta do tempo.
Lembro-me: amava-te desde então
Quando não acreditavas nas horas
E quando estavas imersa em sentimentos uníssonos.
Quero, nesta dança rodopiante,
nesta pintura que escorre a cada instante:
Sem qualquer propósito,
criar algo belo...
... amar-te de novo...
Penso que passei minha vida inteira à espera deste momento.
Na dança no gelo,
as fissuras nos dizem tanto:
enquanto toda luz - tanta luz em desespero - se vê impotente frente à união de nossos corpos,
as rachaduras mostram que este momento é real.
Por mais bela que seja a melodia entrelaçada,
intrincada em nossas mais distantes lembranças,
somos corpos que, após o rodopio, não têm outro destino
que não cair
sobre o gelo.
tão além -
Convidei-te para dançar,
refratar a luz fria de uma imensidão branca,
em passos improvisados,
sobre as fissuras do mundo de gelo.
Escalando notas, deslizando em sonhos
de quando eras criança
de quando patinavas numa fresta do tempo.
Lembro-me: amava-te desde então
Quando não acreditavas nas horas
E quando estavas imersa em sentimentos uníssonos.
Quero, nesta dança rodopiante,
nesta pintura que escorre a cada instante:
Sem qualquer propósito,
criar algo belo...
... amar-te de novo...
Penso que passei minha vida inteira à espera deste momento.
Na dança no gelo,
as fissuras nos dizem tanto:
enquanto toda luz - tanta luz em desespero - se vê impotente frente à união de nossos corpos,
as rachaduras mostram que este momento é real.
Por mais bela que seja a melodia entrelaçada,
intrincada em nossas mais distantes lembranças,
somos corpos que, após o rodopio, não têm outro destino
que não cair
sobre o gelo.
terça-feira, 1 de janeiro de 2008
River Road
Indecifrável movimento da estrada.
Cadência misteriosa esta que não se acanha em suspirar em meio às minhas entranhas.
Passando a curva, desvela-se o horizonte:
Em cima, em cima, em cima
as nuvens anunciam chuva.
Mais do que isso,
a partir de sua base plana, elas crescem em direção aos céus.
Sutilmente agarram a noite e puxam-na para baixo, avisando-me que, por mais que assim pareça, as coisas não são eternas.
A estrada tem esse poder: conecta lugares sagrados.
Deliciosa efemeridade.
Inconfundível movimento da estrada.
Como uma antiga música triste, que no rádio me pega de surpresa,
como um bilhete desbotado,
indecifrável,
a estrada sussurra ternamente em nossos ouvidos a condição humana:
somos seres em trânsito,
seres sós.
Cadência misteriosa esta que não se acanha em suspirar em meio às minhas entranhas.
Passando a curva, desvela-se o horizonte:
Em cima, em cima, em cima
as nuvens anunciam chuva.
Mais do que isso,
a partir de sua base plana, elas crescem em direção aos céus.
Sutilmente agarram a noite e puxam-na para baixo, avisando-me que, por mais que assim pareça, as coisas não são eternas.
A estrada tem esse poder: conecta lugares sagrados.
Deliciosa efemeridade.
Inconfundível movimento da estrada.
Como uma antiga música triste, que no rádio me pega de surpresa,
como um bilhete desbotado,
indecifrável,
a estrada sussurra ternamente em nossos ouvidos a condição humana:
somos seres em trânsito,
seres sós.
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