domingo, 28 de setembro de 2008

O que a contextualização dos embates discursivos acaba demonstrando é que, primordialmente, se falava em emancipação com o intuito de preservar a unidade do Império: a leitura documental aliada à concepção exageradamente ampla de ‘crise do sistema colonial’ poderiam “ter levado alguns historiadores a marcar o ano da abertura dos portos como o do início do processo de Emancipação política, como se esta fosse a lógica ‘natural’ dos fatos ou como se a Independência fosse desejada ou planejada maquiavelicamente há muito, minimamente desde 1808...” (RIBEIRO, p.45, 2002). A crítica velada a Caio Prado, que neste trecho emerge muito claramente, parece recair sobre a excessiva importância que o historiador teria dado a um quadro explicativo assentado sobre um plano de acontecimentos muito geral: a saber, o enfoque demasiadamente europeizante teria criado uma distorção no entendimento do processo de independência. Nas palavras de Maria Odila, tal perspectiva “contribuiu decisivamente para o apego à imagem da colônia em luta contra a metrópole, deixando em esquecimento o processo interno de ajustamento às mesmas pressões, que é o de enraizamento de interesses portugueses e sobretudo o processo de interiorização da metrópole no centro-sul da colônia” (DIAS, p.12, 2005). Em concordância com Caio Prado, Maria Odila coloca que o ano de 1808 tem uma grande importância para a ruptura de antigas estruturas políticas; entretanto, tal descompasso não estaria inserido em um ‘curso da História’: exatamente porque a independência já era fato consumado após 1808 que não é possível pensar os eventos de 1822 como algo inevitável. Ao contrário, tornar-se-ia necessário entender o processo de emancipação política e da construção do Estado em torno do Império como engendramentos de determinações históricas mais sutis.
Como coloca Gladys, o ‘Partido brasileiro’ “seria um ‘saco de gatos’, cujas disputas pelo poder começaram a ocorrer antes mesmo da Emancipação ser vista como separação política total dos reinos” (RIBEIRO, p.40, 2002). Da mesma forma fluida se constituiria o ‘Partido português’: não se colocava um antagonismo claro entre portugueses no Brasil e brasileiros, afinal “todos fariam parte de uma única família” (Idem, p.31). O que se coloca é que “Se o local de nascimento dava a diferença, atenuada pelo parentesco e pelos laços religiosos, isto não era tudo. As ligações econômicas eram os mais importantes ‘vínculos’. Elas cimentavam a união de interesses entre os ‘compatriotas’, que deveriam ser representados nas Cortes” (Idem, p.32). Ou seja, não só não havia um consenso em torno do que seria o ‘brasileiro’ e o ‘português’, afinal todos seriam filhos da pátria lusa, como não também não haveria uma união de interesses dos portugueses em Portugal e portugueses no Brasil, uma vez que os negociantes portugueses haviam enraizado seus negócios na colônia, enquanto que os comerciantes do Porto e de Lisboa haviam sido demasiadamente prejudicados pelos tratados de 1808 e 1810.
Certamente as proposições de Gladys parecem ir de encontro ao cerne do argumento de Maria Odila. No entanto, na nota 59 de seu texto, ela diz:

“Não quero minimizar a importância dos tratados para o desenvolvimento do comércio brasileiro na época. Só não quero que a emancipação [...] seja confundida com o desejo de separação total. Maria Odila Silva Dias é uma das historiadoras que dá grande ênfase a 1808, embora esvazie 1822 como o marco para o início da consolidação da unidade nacional, desvincule a data do quadro de luta da Colônia versus Metrópole e retire o caráter nacionalista do movimento” (RIBEIRO, p.116-117, 2002)

Este excerto é bastante revelador para a compreensão da discussão historiográfica que há como pano de fundo da análise de Gladys sobre o processo de Independência. É certo que a autora não nega a importância da vinda da Corte a terras brasileiras: Gladys tem razão quando afirma que não havia um plano maquiavelicamente traçado desde 1808 e que, portanto – retomando a argumentação de Sérgio Buarque e Maria Odila – as rédeas da Independência não foram tomadas por uma classe que tinha interesses definidos – como propunha Caio Prado ao tratar das forças em embate. Ou seja, seria precipitado dizer que o ‘Partido português’, por estar remando contra a maré da História, estava desde o início fadado ao fracasso. A análise dos jornais e folhetos da época mostra que a Independência era coisa incerta mesmo depois de sete de setembro. Da mesma maneira, foi necessário um grande esforço político para criar uma noção de brasilidade em contraposição à ameaça portuguesa de reunião dos Reinos sob uma única Coroa. No entanto, com o intuito de refutar qualquer concepção teleológica da História e de posicionar a construção de identidades como fruto de um sistema de relações, a autora necessariamente acaba dando demasiada importância aos debates e discursos que aconteciam no ‘calor da hora’, esvaziando, assim, a noções de movimento e sujeitos históricos. Ao tentar dar historicidade à proposição de Eni Orlandi, que figura logo no início de seu texto, Gladys rejeita a idéia de que discursos produzem seus significados de acordo com suas contraposições internas. Todavia, ao abandonar as explicações de cunho estrutural e ao afirmar que os discursos moldam a realidade e são moldados por ela, a autora acaba tendo que reduzir o movimento de independência a um embate discursivo catalisado por acontecimentos políticos. Ou seja: o movimento constitucional do Porto lançaria a fagulha necessária para que os debates em torno das condições de colônia e metrópole se iniciassem. Como resultado destes embates, a separação total entre Brasil e Portugal teria se dado no ‘calor da hora’ e seria necessário que se reunissem esforços para “convencer o Povo e a plebe de que [o Grito do Ipiranga] havia sido bem pensado e teria sido fruto da justiça e da razão”. Ou seja, se por um lado Gladys nega que haveria um plano conscientemente traçado para a Independência desde 1808, por outro ela admite que, dada a separação, seria necessário esboçar ativamente a noção de uma Nação que ali nascia.
De certa forma, a análise de Caio Prado, ao se focar no entrelaçamento dos movimentos econômicos e políticos, tem a vantagem de evidenciar que a maneira como os homens se engajam e se posicionam ativamente frente às estruturas sociais cria condições de ação que são mais ou menos determinadas por esse engajamento. Isto é, entendendo o discurso também como uma forma de se posicionar criticamente frente ao mundo, só se pode pensá-lo conjuntamente à posição social ocupada pelo criador do discurso frente às estruturas sociais (que certamente estão além do campo de visão do indivíduo). Se o movimento histórico é extremamente marcado na análise de Caio Prado, é porque ele está sobremaneira preocupado com o olhar sobre as estruturas: de certa forma, não é um absurdo dizer que a Independência já havia acontecido em 1808, uma vez que o enraizamento da Corte no Brasil criaria condições que dificilmente poderiam sofrer um retrocesso. No entanto, torna-se necessário o cuidado maior com os eventos conjunturais para que se torne evidente para o historiador que as pessoas, em suas vivências cotidianas, estão demasiadamente imersas em seus mundos sociais e que, por isso, seus olhares e sua capacidade de ação são necessariamente posicionados – desta forma evita-se que se criem ‘super sujeitos históricos’, incorporados na concepção de classe de Caio Prado, por exemplo. Ora, entretanto, o historiador deve dar um passo além: seu trabalho não deve ser apenas o de se tornar mais um sujeito imerso nos discursos da época – operando de tal maneira que os eventos políticos como a Independência acabem se envolvendo numa neblina analítica da qual é difícil de se desfazer. Não basta, portanto, uma visão ampla sobre a produção discursiva de um período: o historiador necessariamente precisa observar a emergência de tais discursos frente a movimentos históricos mais amplos que o campo de visão dos interpretadores locais. O abismo que se coloca entre o discurso e a prática social, no caso da análise de Gladys, acaba transformando o movimento histórico em algo alheio aos sujeitos: afinal, a eles só é reservada a interpretação polissêmica dos fatos. Sendo assim, no caso da Independência, notar-se-á que ela pode ter sido feita no ‘calor da hora’ para aqueles sujeitos imersos em seus mundos sociais, mas não aos olhos do historiador.

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