domingo, 29 de agosto de 2010

Desejado




Caminharei no teu olhar,
Por entre as sendas de tua íris:
rajadas de vento, ansiando o corte
que arrastará consigo nossos segredos.

Afastarei com cuidado
Os grãos de areia que,
revoando em ciclones castanhos,
rebatem em meu rosto refletido.

Terei sede quando, enfim,
Meu corpo escasso pedir socorro
E meus poros suarem toda a miragem
que,
tão longo,
habitou fundo a minha casa.

Assim,

Estancando o respiro
que antecede a palavra,

Acordarei deste sonho.

E as imagens,
concatenadas numa manhã de tanto esmero,
Serão apenas parcas lembranças:

Peças desconexas de brinquedo
Passando de dedo em dedo,
Enterrando-se em terra úmida,
Esperando o esquecimento;

Letras indecifráveis
De um manuscrito antigo,
Meneando-se melosas,
Feitas cantigas recitadas por crianças;

movendo-se do giro
do próprio ocaso;


tramontando o desejo
de existir
no tempo.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Le déplacement



Sonhei
Os ecos do meu próprio gesto:
Arco sobre a sombra,
Pesada em ausência,
Carente de um novo sacrifício;
Consciente

de seu primeiro
descompasso.

Vi
Os sulcos no meu reflexo:
Cravagem desastrosa,
Reféns confessos
Dos choques contínuos
Do obturador;

testemunha
do sono incompleto.

Assisti,
Convoquei-me:
Por ardente decreto,
Ao desmantelamento
Do meu próprio corpo,
À inevitável queda

de cada mácula
despencando do nu...

...irremediavelmente compresso
ao inevitável momento da vergonha.

sábado, 26 de junho de 2010

Amor



O amor vem do silêncio,
É urdido em seu ventre
abissal.

Depois desponta
num crescendo arisco;

Cintila
delicado
enxame de ecos

que,
Escalando ruídos,
Coletando cacos de ruínas,

- restos de humanidade, de história esquecida -

Se rebatem em arpejos,
Tragados pelo vazio
que os criou.

Até que,

Os olhos
- fechados -

O ser
- fendido -,

Torna-se audível:
O amor não é mais silêncio.

Letra apagada
que não é mais lei
não é mais.

Vida.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Um barco ou poema um pouquinho desafinado




Catei,
uma a uma,
as faíscas que caíam
da esquisita dança
de um começo,
que estalava
e girava em falso, agarrado
ao seu próprio fim.

Com cuidado,
construí um barquinho
com os restos que escapavam
dos nossos
olhares complacentes,
dos nossos carinhos sinceros,
nossos abraços em silêncio.

Não foi sem dor
que me despedi da embarcação
azul e laranja,
ornada de pequenas velas
amareladas,
que fiz para flutuar a esmo
e queimar sozinha
numa imolação quietinha
e escondida:

a capitulação
do ângulo reto
entre o sol e o mar.

Passada a exasperação
da oferenda;
descida a noite,
sobraram somente os olhos
ligeiramente avermelhados:
não sei se pelas rajadas do vento
marítimo
que bufava diante da canção
um pouquinho desafinada
que cantava o nosso tempo;

ou se pelo meu espelho
que, ficando para trás,
esquecido pela nau,
escurecera sem ninguém perceber.

Reflexo mesquinho:
qual o qual,
- índice de solidão -,
com um pouquinho de escárnio,
e bastante perplexidade,
estilhaçara-se ante o meu rosto,
cravejando pedacinhos de prata
na minha íris,

que, arqueada,
caravelava,
para frente e para trás
em busca de um lugar
para deitar suas costas
cansadas.

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Da revolução




I – A lei

O brusco
abalo
do sereno
riso
craveja
a culpada
carne:

O grito.

II – Non liquet

O punhal
cai
da mão
do sacrificador:
sua ablativa
pupila
é abjurada

Do mito.

III – A catástrofe

O corpo
devastado
restituído
tateia
a ferida
aberta
do silêncio:

Sem sangue.

IV - O anti-Éden

Nossa queda
Nu sem mácula
Voz absoluta
Index veri.

terça-feira, 8 de junho de 2010

Às vagas




Como o primeiro homem –

mil léguas arrastado pelo vento
ao ver seu rosto refletido –

Depuro em mim
A estranheza em um vulto familiar.

----------

Tua lembrança clama
Minhas mãos ressequidas,
Meu hálito breve.



Mas,
refreados subitamente,
Já não podem tocar
O corpo que é informe:

Que, no desluzir-se,
é arrancado

- gota a gota –

para a quina do ser.

----------

No eco do gesto interrompido,
Sinto reverberar,
Como ondas nascendo de uma gruta,
Aquilo que afaga meus cabelos,
Consola o ocaso do eterno,

Suspende,

Suspende,

Suspende:


o silêncio.

terça-feira, 18 de maio de 2010

O homem sem rosto




No jogo plúmbeo da consciência,
que se afasta,
Tece-se o vagaroso elã
de ir longe,

demais.


Os passos se equilibram
sobre o fio vermelho no corredor.
Apontam, inaudíveis, em direção à sala,
os estalos da velha madeira envernizada,

demais.


A mão tateia as paredes brancas,
afasta a névoa em teia,
enche-se de calores úmidos,
e roça nos rasgos dum êxtase vazio,

demais.


O piso em falso anuncia o grito -
contido, abafado, silencioso: infantil.
O convite sussurra os cabelos,
o riso emerge da neblina, assustador;
são dentes e olhos brancos,

demais.

----------

O tilintar dos espelhos quebrados rompe a noite.
O rosto, de único golpe, afunda-se no deslocamento brusco
dos mil cacos que iluminam as ruínas em uma só cor:
terrivelmente uníssona;
terrivelmente real.

Os olhos revirados para cima
vêem recair sobre si sua imagem refletida

no céu sem qualquer estrela,
pesadamente negro.