quarta-feira, 13 de novembro de 2013

3 mortes

3 mortes





Cena I

Seu olhar escapa
seu olhar atravessa
escorregadio

entre uma brincadeira
e outra um rodopio
inebriante sobre a
certeza
“você tem os olhos dele”.

Cena II

Há aquele diário
nele uma entrada
sobre a mulher loira
nem faço ideia

“ – o que foi feito dela?
   – virou poeira no fundo do fundo
da mente: ataxia do desejo
de um fantasma”.

Cena III

Um telefonema à noite
do outro lado um choro
meu coração bate

era engano ou trote

daqui
a noite engole o choro
plano, em silêncio
sei, algo estranho
cresce em você

e esta noite se
tornará inquietante
imagem
de sua vida em

ausência.

terça-feira, 22 de outubro de 2013

Amoreira




Diz que
se chama providência
essa coisa de
acaso.

Pois que
aqui
não pode havê-lo:

há as ruas
e nelas mesmo
as vielas
têm suas ocupações:

de pernas cruzadas
na contravenção
se sopesa onde
está o amor
onde diabos
o coração mora.

Pois que
se diga muita coisa:

apaixonamento de gente
analisada
localizando o objeto
descascando o desejo
reformando a memória.

Visto de frente,
é coragem.

Meio de viés,
de ladin
é só medo mesmo.

E o argumento
toma tombo
feito aquela troça
de menino
que um empurra outro põe o pé.

Pois que é assim
que a gente lembra
que nossa decisão
já foi faz tempo

e a recordação
é um tiro no olhar
certeiro
e que põe a gente a chorar
não que a vida é difícil
mas que ela vem
de toada
nem dá tempo de proteger
é enxurrada.

Diz que é acaso
e eu acredito

mas no meio do dilúvio
sei que seu
coração (o músculo)
parou
e eu encontrei
a única amoreira
de São Paulo. 

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Ângulos de uma manhã




De um ângulo
o sol inflete
e é apenas o sol
na sacada
é apenas manhã.

De outro
são seus cabelos
tarrafa negra
eram cacheados
lisos e presos.

Outro ainda
são seus músculos
deduzidos daquela
alvura toda
de madona.

E no mais
os lençóis é mosaico
e as horas são gentis
caleidoscópio
do que chamam “felicidade”.

Contudo
aquele ângulo absoluto
onde o sol não habita
a luz não refrata
a história para.

A seca perspectiva
do tempo da morte
um mendigo ao chão
se move neste ponto cego
que parece uma penetrante
obtusidade.

São seus olhos
este monumento
onde todas as palavras
refugam
com medo
deste inexplicável ruído
um deus sem obra

é o movimento das pálpebras
recortando a súplica
sem fundo
destes teus olhos

domingo, 15 de setembro de 2013

Era só uma sombra larga





Queria ler aquele poema
do Drummond
da mesa cheia
mesa vazia.

Queria saber
que seus olhos cinzas
veem.

Queria
uma lembrança cintilante
Cajuru nos anos 30

um caco de vidro
garrafas de leite
o guincho de um porco
e a tal mangueira
tão impossível
no quintal
que já nem é nosso.

Queria molhar
seus pés de menina
descalços no terraço
prendados na praça.

Auscultar sua música
um traço borrado no
horizonte
entre a luz
e a sombra.

Lamber suas pálpebras
pesadas
nas madrugadas longas.

Queria um chão familiar
chão batido sobre outro
mais ancestral
sobre este
um outro mundo
pra lá de lá
onde chove sal e o sol
não fala português.

Queria te chamar de tu
te chamar de tu
quando as ilações
da varanda
grassam no você.

Adentrar sua dor
aquela dor
tão bem inscrita
rajada em cinza.

Queria ser poema
aquele do Drummond
aquele
esquecido, sabe?
Pra sempre resto
folha na gaveta
uma imagem:
a mesa cheia
agora vazia.