domingo, 8 de novembro de 2009
O que é um abismo entre nós?
Querida, por favor, aceite este presente. Não é uma adaga, tampouco um crucifixo: é simplesmente o éter confuso de dois corpos enlaçados em suor, lágrimas, desespero. Assisti à passagem de um som familiar - uma canção conhecida - que se fez eco distante. Ainda assim, este ruído me parece sublime: a explosão, o choque de mil almas tão retorcidas, tímidas. Contração de dois corações seguida de uma diástole que se estende de tal forma a ultrapassar nossos corpos e tocar tudo que nos envolve.
Querida, por favor, aceite esta visão do mundo secreto desvelado... segredo tão mal guardado. Como diz o poeta:
"Down by the railway siding
In our secret world, we were colliding
All the places we were hiding love
What was it we were thinking of?"
No que estávamos pensando quando desafiamos o mundo? Não há perdão para isso, todos devemos pagar na carne - em nossos olhos inchados - a eterna culpa. Como ousamos erigir monumento tão belo? Por que colocamos tantos balões em volta do nosso lar se sabíamos que a gravidade é implacável?
Querida, solto da sua mão. Momentaneamente, no entanto. Espero você atrás da porta, na volta da esquina, na mirada de uma passante que se recusa a desviar os olhos.
Minha pergunta ainda é a mesma: vamos?
Vamos.
domingo, 25 de outubro de 2009
Des choses cachées depuis la fondation du monde
Sob o choque do relato funesto
O desejo se estabiliza, recua, congelado:
amarrado.
Sob a influência da gargalhada alheia
o desejo manifesta o escárnio no canto da boca;
mostra sua face cruel, animal e violenta.
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Em meio ao esfacelamento do Outro,
sob a égide da eterna dúvida
- que azeda o seio amigo -
o instinto se mostra errante, sempiterno;
salta pela janela e ganha a rua:
cheia de vultos, ela ri do desejo.
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A errância é sua essência, porém sempre velada;
deve ser velada: escondam os espelhos,
esconda sua própria carne, por favor.
Enquanto se equilibra na calçada, o desejo se moca de si,
é levado por sua curiosidade ao ritual macabro;
o desejo conhece, enfim, seu irmão gêmeo: o fraterno pária.
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Não sem pavor que é feita tal descoberta:
sob as máscaras escondem-se humanos
ou o monstro Dionísio?
Esquecendo-se de si, o desejo é satisfeito.
Sobre o altar, Caim afia a foice, da qual pinga o sangue maculado
das coisas escondidas, sufocadas, desde a fundação do mundo.
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sábado, 17 de outubro de 2009
A fábula do estrangeiro
Andou em direção ao mar com passos curtos, decididos. Sentiu aquele estranho bafo quente e salgado grudar em seu rosto, penetrar seus sapatos: o resto de si, que o mantinha em pé, cedeu à areia molhada que afundava a cada gesto. Caiu de joelhos, depois de costas, crucificado em água e sal.
Abriu os olhos e sentiu a lua exercer uma enorme gravidade negativa: seus raios de luz pesavam sobre seu rosto - ou era seu pesar mesmo que se confundia com o da lua?
Só soube do delírio em que havia se jogado quando perdeu o equilíbrio entre sufocar-se e extasiar-se, entra a lembrança e o sonho. Veio a angústia, velha companheira: mãe protetora e carinhosa.
Mas era tarde demais: as células do seu corpo já se confundiam com os cristais de silício e com a água. Isso era um sentimento completamente novo, assistir à decomposição do eu e à fusão do corpo em pequenos orgasmos. Havia sim muita dor, é verdade, mas não havia quem senti-la... Ela se dissipava no afeto que dominava, enfim, seu corpo: se sentia completamente estrangeiro, no entanto sem angústia, sem lamentação.
Apenas estranho.
quinta-feira, 15 de outubro de 2009
Verka
"Blessed are the forgetful: for they get the better even of their blunders"
Eu não suporto mais viver nesta eterna repetição do mesmo: passo por imagens perfiladas, como quadros em um museu, imagens familiares pois são minhas. Mas estas figuras da memória perderam seu teor e descansam frias na parede branca. De que valem se não têm história, se não me olham de volta? Tento desesperadamente agarrá-las como se fosse possível resgatar o tempo em que eu submergia para aquém de mim. Mas tudo o que eu tenho são segundos que me cobrem como cinzas de um prédio destruído: tudo o que eu tenho sou eu, agora, neste instante. Uma realidade que eu nunca quis e que agora pesa sobre mim. Eu sou este ser que sobe e desce escadas de um museu mórbido e sarcástico: as imagens nas paredes não são nada mais que espelhos - tão precisos que não retribuem qualquer olhar, não deixam qualquer distância.
terça-feira, 8 de setembro de 2009
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