domingo, 30 de setembro de 2007
O trinco
-Não, obrigado.
Colocou a mão na maçaneta e girou-a sem, no entanto, puxar a porta: o trinco se recolheu tensamente.
-Viu...
Passou os olhos rapidamente pelo apartamento iluminado por uma cortina semi-fechada; o chão de taco estava opaco. No sofá, o violão buscava acordes num caderninho rabiscado.
-Hum... O quê?
Os olhos colocavam-se em seu devido lugar: dentro de uma longa inspiração. O trinco continuava recolhido à sua posição de iminente inconstância; mas, desta vez, a porta balançava num vai-e-vem milimétrico. Ao fim da expiração, o trinco liberou sua tensão.
-Nada, já volto. Até mais...
-Até.
E nunca mais voltou.
Melhor para o trinco, que pôde continuar em sua deliciosa resignação.
quinta-feira, 27 de setembro de 2007
A beleza antropológica
Este ano foi marcante para mim em diversos aspectos.
Em primeiro lugar, me senti muito mais livre para questionar antigos paradigmas que sempre nortearam a minha conduta e me permiti abrir-me para novas idéias e novas concepções de mundo. Passei a permitir que as coisas que eu sentia em relação ao meu contato com o mundo no seu sentido mais amplo também influenciassem na minha visão acerca das Ciências Sociais e, mais especificamente, da Antropologia.
Bem, um texto tem papel importante nesse movimento: "Os Usos da Diversidade", de Clifford Geertz. Seus escritos sempre mexeram comigo de alguma forma... Às vezes quando estou lendo o titio Geertz eu penso "Nossa, parece que estamos em sintonia...". Mas esse texto em especial eu posso dizer que me deu um novo fôlego acadêmico! Sempre me incomodou a idéia - que eu vejo muitas vezes cristalizada em algumas pessoas - de que eu teria que reproduzir, no futuro, um conhecimento acadêmico meramente formal. Ou seja, uma discussão vazia, que não acrescentasse em nada na vida das pessoas... E quando eu digo vida, eu quero mesmo dizer vida! É muito triste pensar que muitas vezes aprendemos só para ter a capacidade de exercer algum poder sobre alguma outra pessoa... Ou então simplesmente para subir, subir, subir na escadinha acadêmica e, depois...???
Pois bem, pensando nisso tudo: pensando no sentido mais profundo de estudarmos o outro, Geertz diz:
A tarefa da etnografia, ou uma delas em todo caso, é sem dúvida fornecer, como fazem a história e as artes, narrativas e cenários para refocalizar a nossa atenção; não, no entanto, os (cenários) que nos tornam aceitáveis para nós mesmos pela representação de outros reunidos dentro de mundos onde não queremos e não podemos chegar, mas os (cenários) que nos tornam visíveis para nós mesmos pela representação de nós e todos os demais postos no meio de um mundo cheio de estranhezas irremovíveis das quais não podemos nos manter distantes.
É exatamente esse tipo de conhecimento acadêmico que eu quero: aquele que me jogue no mundo, não o que me deixe à parte dele.
Obrigado mais uma vez, tio Geertz!
domingo, 23 de setembro de 2007
sábado, 22 de setembro de 2007
Love
'Love is real, real is love
Love is feeling, feeling love
Love is wanting to be loved
Love is touch, touch is love
Love is reaching, reaching love
Love is asking to be loved
Love is you
You and me
Love is knowing
We can be
Love is free, free is love
Love is living, living love
Love is needing to be loved'
O amor não existe a priori. O amor não existe como essência. Não há essência no amor.
Não se encontra o amor; tampouco se perde o amor.
O amor, ele é vivido. O potencial do amor é infinito, uma vez que ele troca olhares deliciosamente singelos com o momento.
O amor é liberdade: é a prisão do instante.
O amor é alienar-se; o amor é atingir-se.
O amor é a coisa mais real que podemos experimentar.
quinta-feira, 20 de setembro de 2007
Dormir
Preciso dormir. Preciso dormir. Preciso dormir. Preciso dormir.
Preciso dormir. Preciso dormir. Preciso dormir.Preciso dormir.
Preciso dormir. Preciso dormir. Preciso dormir. Preciso dormir.
Preciso dormir. Preciso dormir. Preciso dormir. Preciso dormir.
Preciso dormir!Preciso dormir! Preciso dormir! Preciso dormir!
Preciso dormir! Preciso dormir! Preciso dormir! Preciso dormir!
Preciso dormir! Preciso dormir!Preciso dormir! Preciso dormir!
Preciso dormir! Preciso dormir! Preciso dormir! Preciso dormir!
Preciso..............Preciso.............. Preciso.............. Preciso..............
Preciso.............. Preciso.............. Preciso..............Preciso..............
Preciso.............. Preciso.............. Preciso.............. Preciso..............
Preciso, não! Aula... Dormir, sem contas... Afinal! Preciso preciso
Como? Ela estava lá... Dormir! Precisamente, o saber local, vou.
Preciso.... Dormir.... Dormir.... Dormir.... Ahn? Oi? Me lembro.
Resignificação, amor... Dormimos, quem sabe? Son, he said!
Grab it, drop it. Preciso. Preciso. Precisoprecisoprecisopreciso.
1234567777.... 8... 9.......10.... Preciso... Preciso.... Preciso..........
Preciso.
Preciso.
Preciso.
Preciso.
Preciso.
Preciso.
Preciso.
Preciso.
Preciso.
Preciso.
Dormir...
quarta-feira, 19 de setembro de 2007
A suavidade que se segue
Acordei-me de um sono muito estranho, um sono de... séculos. O quarto estava bem mais escuro do que o normal e, estranhamente, não ouvia qualquer barulho: nem mesmo o habitual cri-cri-car dos grilos ou o movimento sofrível do pequeno ventilador. A casa estava tomada por um silêncio absoluto, e tal silêncio conspirava contra a minha vontade de tomar consciência do meu corpo e levantar em busca de um copo de água. Parecia-me que a dimensão dos sonhos ainda me empurrava violentamente contra a cama, como mil exércitos pressionando-me para dentro de mim.
Eram as horas mortas da madrugada, certamente. Horas para as quais a ciência e a lógica fechavam as pálpebras, com medo dos mistérios que podiam fitar-lhe os olhos. Um olhar que, por conter tanta verdade, assustaria qualquer um. Acredito que todos nós já nos deparamos com tais horas durante o nosso sono, mas – espertamente – voltamos à condição segura do inconsciente e do ego. Eu gostaria muito que não tivesse visto o que vi, que tivesse virado para o lado e voltado a dormir. No entanto, a sede era demais, uma sede extra-humana.
Como num salto a um abismo, meus membros voltaram a si e senti-me restituído. Um alívio. Uma falsa sensação de controle sobre as horas mortas. Lentamente, coloquei os dois pés no chão, ao mesmo tempo. Esfreguei o rosto: meus olhos ardiam a secura. Finalmente os abri conscientemente, e o que vi foi o silêncio preenchendo o quarto como um éter – fluido e, por isso, amedrontador. Levantei-me e, lutando contra a escuridão, andei lentamente, apalpando os objetos
No corredor, as janelas traziam a luz pálida da lua. “Devem ser quatro da manhã”, pensei. Olhei para o meu relógio de pulso e ele não estava lá. Tentei recorrer à memória: “eu tirei o relógio antes de dormir?”. Não me lembrava. Em verdade, não me lembrava de ter ido dormir. Fatos desconexos me vieram à mente, não sabia dizer se havia sido um sonho. Entretanto, uma memória que me escapava era a de ter-me deitado naquela noite. Parecia que eu dormia havia séculos...
Ao final do corredor, havia a porta para a cozinha à direita e a entrada para uma sala ampla à esquerda. Andei cuidadosamente, tentando não chamar a atenção para os meus passos. Tarefa difícil: a cada um deles, a madeira no chão estalava e rangia, quebrando o silêncio (ou, quem sabe, corroborando com ele). No final do corredor, virei à direita. Novamente tentei acender a luz, mas nada funcionava: “Estamos sem energia”. Encontrar o velho filtro de barro repleto de água foi como abraçar um irmão: senti-me em casa novamente. Aquela água descia a minha garganta completando-me existencialmente. Senti minhas formas completarem-se novamente. Sentia com clareza meus braços, meus dedos, meu pé - descalço tocando o chão frio. Sentia-me inteiro.
Havia perdido o sono. Na verdade, nunca o tive. No entanto, minha cabeça doía e meus olhos ardiam o cansaço. Meu corpo não. Dirigi-me à sala, onde havia uma grande janela com vista para o quintal. Olhei através dela e vi formas estranhas no jardim: talvez fosse o efeito da escassa luz, não sei. Mas algo parecia estranho: ele estava maior, mais comprido. Ao fundo, a mangueira e a amoreira pareciam menores, como eram há muitos anos. Aquela sensação do silêncio como um éter se multiplicava e se intensificava no quintal. Não se tratava mais de um éter fino e meticuloso. O silêncio agora se estendia pesadamente sobre o chão, parecendo uma forte neblina. Mas não havia nada ali; certamente não. Como uma criança, abri a janela e sentei no parapeito, olhando de volta para a sala. A mesa de jantar, o piano, o grande relógio ao lado da cristaleira... Tudo em seu exato lugar. Quando percorria o espaço com os olhos, meu peito apertou-se subitamente: “O espelho!”.
O espelho! Ao lado da cristaleira, o espelho! Havia um grande e grave pano branco cobrindo-o. A neblina silenciosa, que antes tomava conta do quintal, entrava pela janela que eu havia aberto. Sentia-a nas costas, passando por entre meus dedos que se apoiavam no parapeito. Sentia seu frescor gélido de horas mortas da madrugada. A neblina se tornara tão pesada... Parecendo um grande rio passando por mim, um rio de águas densas, longe da nascente.
O espelho... Levantei-me e andei ao seu encontro. Meu coração gritava uma angústia tão forte, novamente não me sentia mais inteiro. Sentia que meu corpo se espalhava por toda a sala. Esta, por sua vez, tomava uma dimensão universal e transcendente. Sentia minha mão direita tremendo ao estendê-la em direção ao pano. Fechei os olhos e puxei-o, revelando a face espelhada. Nesse instante, percebi a verdade sobre as horas mortas da madrugada. Percebi que não se tratava de um tempo como o conhecemos: tratava-se de um instante apenas. Um instante no qual o silêncio era o espaço e a consciência era a sua terceira dimensão. A consciência.
Olhei-me no espelho. Certamente o que vi não é algo que se vê normalmente quando se encara o próprio reflexo. A imagem tinha vida, lutava contra mim. Senti a mesma sensação de quando se luta para acordar: tomada de consciência. Com muita força, consegui dirigir meu olhar para os meus próprios olhos... Assim como quando se vira um microfone para uma caixa de som, a imagem amplificou-se numa microfonia absurdamente alta. Percebi, então, que meu corpo se ampliava em tal microfonia, formando uma rede branca em volta de mim; uma rede que aumentava de tamanho, concentrava seus nós e depois se expandia novamente.
Lembranças, lembranças, lembranças... A angústia, que antes era predominante, dava lugar, se desfazia, sintetizava-se na suavidade que, de alguma forma, preenchia de maneira muito mais concreta os espaços. Ela não entrava sorrateiramente por entre as frestas. Ela tinha a dimensão eterna e infinitamente acolhedora de uma terna recordação: o poder explicativo das metáforas, o rico saber de uma seqüência de acordes que o acompanhou por toda a vida. O piano. A madeira: cheiro e cores. A cristaleira. A mangueira. O quintal, amplo como o mundo. Uma cena de filme, uma risada. Era essa a dimensão da consciência, que transcendia o tempo e o espaço da sala. Transcendia o silêncio, era mais do que ele.
A imagem no espelho se perdeu, assim como o meu próprio corpo. Restou-me a consciência, que não mais tentava abarcar o mundo, mas sim era parte dele.