Se Caio Prado busca explicações que colocam as transformações políticas em direta relação com as contradições históricas, espera-se que o autor não deixe de lado as disputas pela retomada de poder por parte dos portugueses que, antes das “interferências” inglesas, usufruíam dos benefícios legados pela estrutura de dominação colonial. De um lado, como resultado da perda do monopólio comercial, ter-se-ia, em Portugal, o esvaziamento de produtos brasileiros, o que, para Caio Prado, teria levado o Reino “a uma situação econômica desesperadora” (PRADO JR, p.44-45, 1979). De outro, haveria uma grande parcela de comerciantes portugueses enraizados no Brasil que haviam perdido muito com as políticas de Dom João e com a concorrência de comerciantes estrangeiros. É desta forma que Caio Prado oferece uma explicação ao movimento constitucional do Porto: contra a “marcha da história”, tanto os portugueses em Portugal, como os portugueses no Brasil veriam na mobilização em torno da constituição – que tinha como horizonte a recondução do Brasil à posição de colônia – um sopro de esperança. Ora, colocadas as contradições em torno das estruturas de dominação, era de se esperar que viessem à tona as tensões entre camadas sociais antagônicas: nas palavras de Caio Prado, “o país entra em ebulição” (Idem, p.46).
O autor reconhece uma multiplicidade de forças e interesses que se manifestam nesse contexto – desde forças reacionárias; passando por grupos que tinham em vista a manutenção, através de um regime constitucional, dos privilégios obtidos desde 1808; até forças populares, que viam na constituição uma perspectiva de libertação da exploração colonial. Mas, como o rompimento de Portugal havia se dado sobre as bases lançadas pela própria metrópole – o que acabaria diferenciando a independência brasileira das demais colônias americanas -, tal ebulição popular não conseguiu levar adiante as reivindicações da maior parte da população. Desta forma, o movimento que culminou com a Independência em 1822 geraria uma disputa polarizada: de um lado, haveria o chamado ‘Partido português’, que se erigia como a incorporação dos desejos lusos pela recolonização; do outro, se colocaria o ‘Partido brasileiro’, que representaria as classes superiores da colônia – ou seja, a elite proprietária de terra. Sobre o processo de libertação do jugo colonial, Caio Prado diz:
“A reação recolonizadora, embora contando com o apoio da metrópole e das cortes portuguesas, será levada de vencida porque não era mais possível deter o curso da História. A isto se opunha o conjunto do país, cuja própria subsistência [...] se tornara incompatível com os estreitos quadros do antigo e já superado regime de colônia” (Idem, p.46)
Neste ponto se colocam algumas questões historiográficas importantes. Para Sérgio Buarque de Holanda, reflexões acerca do grande peso colocado sobre os ombros do Brasil pelo sistema colonial, antes de 1808, eram restritas a uma camada muito rala da população. Ou seja, o questionamento que surge é o seguinte: até que ponto o anti-lusitanismo e a distinção clara de interesses brasileiros e portugueses se colocavam dentro de um projeto orgânico de emancipação? Em que medida, portanto, a revolução constitucionalista do Porto fora encarada como antibrasileira – ou seja, de que forma o liberalismo, tomado como prerrogativa da revolta lusitana, mostrara sua dupla face? Como coloca Sérgio Buarque: “Os clamores cada vez mais estridentes do lado europeu contra tudo o que tenda a entorpecer a obra comum, e contra toda autoridade cujos privilégios não emanem de um claro mandato do povo [...] ecoam entre nós, bem ou mal, como se quisessem pura e simplesmente a restauração do estatuto colonial” (HOLANDA, p.14, 1976). Não é de se espantar, portanto, que surjam alianças a contrapelo de posições ideológicas díspares: é desta forma que os adeptos do absolutismo em Portugal acabam se juntando ao movimento que acabará por levar à Independência. Contrariando a noção da colônia que, ao tomar consciência de sua posição subjugada, rompe os grilhões que a ligam à metrópole, Sérgio Buarque demonstra que as disputas em torno da independência são fundamentalmente frutos de dissensões entre portugueses: ao contrário do que coloca Caio Prado, não teria sido legado o papel de tomar as rédeas do processo de constituição de uma Nação unificada por trás do movimento de emancipação política ao ‘Partido brasileiro’. De fato, como também apontará Gladys Ribeiro, a construção do antagonismo de nacionalidades entre portugueses e brasileiros, assim como o próprio processo de unificação política em torno da nova Nação, serão posteriores ao sete de setembro de 1822:
“é inegável que a presença portuguesa foi insistentemente encarada, entre numerosos brasileiros, como um perigo mortal para liberdades nascentes e mal seguras. Sobretudo quando esse perigo pareceu encarnar-se na pessoa de seu próprio Imperador e ‘defensor perpétuo’. Não é demasiado pretender, assim, que o longo processo de emancipação terá seu desfecho iniludível com o 7 de abril” (HOLANDA, p.15, 1976)
O problema da construção da identidade brasileira pós 1822 está no cerne das preocupações de Gladys Ribeiro. É possível dizer que o esforço que perpassa seu texto é o de dar à constituição do que é ‘ser brasileiro’ o caráter construído e livre de determinações muito amplas: a autora retira das representações em torno das identidades, assim como do que tradicionalmente se entendeu, na historiografia, por “constitucionalismo” e “independência”, qualquer espécie de essência que seria atualizada ou por eventos político-econômicos externos, ou pela vontade de personagens políticos. Com efeito, como diz a autora:
“A ‘identidade’ surgiria, então, como fruto dos embates sociais, podendo ter múltiplos sentidos, de acordo com os momentos e os agentes sociais envolvidos. Não se trata de procurar uma única identidade, com elementos comuns e homogêneos, sim diferentes maneiras de ‘ser brasileiro’ e de ‘ser português’ ao longo do período” (RIBEIRO, p.28, 2002)
Já que os embates discursivos “construíam a realidade e eram construídos por ela” (Idem, p.29), os jornais e folhetos do início do século XIX são fontes essenciais para se entender de que maneira os indivíduos reelaboram a cultura e interpretam os momentos históricos de acordo com a posição que ocupam em um conjunto de relações. A revolução constitucional do Porto acaba ganhando importância na análise de Gladys não pelo que há nela de efeito, mas no que lhe há de causa. Ou seja, colocada a crise em torno da volta de Dom João VI, da escritura de uma constituição que poderia marcar mudanças profundas nas relações entre Brasil e Portugal, torna-se necessário o exame das interpretações e deslizes semânticos dos termos em discussão. Segundo a autora, o debate em torno da palavra ‘liberdade’ acompanhou o desenrolar do movimento encabeçado pela cidade do Porto. Ainda que tal movimento pressupusesse a volta do Rei a Portugal e uma ‘re-inversão’ das relações entre metrópole e colônia, “todos os grupos ou ‘facções’ eram unânimes nos bons propósitos de organização da Nação portuguesa ao redor de leis básicas e promotoras da liberdade do indivíduo” (Idem, p.30). Com efeito, Gladys demonstra que, apesar das dissensões em torno da organização política deste novo reino – a saber, o interesse preponderante por parte dos portugueses europeus em transformar o Brasil em província e as aspirações brasileiras, capitaneadas por São Paulo, em fazer do Brasil outro reino federado em torno da coroa –, não se cogitava, por nenhuma das partes, a separação política completa: tal hipótese figurava mais como ‘blefe’ do que uma proposta sólida levada a cabo por um grupo político organizado.
domingo, 28 de setembro de 2008
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