O que a contextualização dos embates discursivos acaba demonstrando é que, primordialmente, se falava em emancipação com o intuito de preservar a unidade do Império: a leitura documental aliada à concepção exageradamente ampla de ‘crise do sistema colonial’ poderiam “ter levado alguns historiadores a marcar o ano da abertura dos portos como o do início do processo de Emancipação política, como se esta fosse a lógica ‘natural’ dos fatos ou como se a Independência fosse desejada ou planejada maquiavelicamente há muito, minimamente desde 1808...” (RIBEIRO, p.45, 2002). A crítica velada a Caio Prado, que neste trecho emerge muito claramente, parece recair sobre a excessiva importância que o historiador teria dado a um quadro explicativo assentado sobre um plano de acontecimentos muito geral: a saber, o enfoque demasiadamente europeizante teria criado uma distorção no entendimento do processo de independência. Nas palavras de Maria Odila, tal perspectiva “contribuiu decisivamente para o apego à imagem da colônia em luta contra a metrópole, deixando em esquecimento o processo interno de ajustamento às mesmas pressões, que é o de enraizamento de interesses portugueses e sobretudo o processo de interiorização da metrópole no centro-sul da colônia” (DIAS, p.12, 2005). Em concordância com Caio Prado, Maria Odila coloca que o ano de 1808 tem uma grande importância para a ruptura de antigas estruturas políticas; entretanto, tal descompasso não estaria inserido em um ‘curso da História’: exatamente porque a independência já era fato consumado após 1808 que não é possível pensar os eventos de 1822 como algo inevitável. Ao contrário, tornar-se-ia necessário entender o processo de emancipação política e da construção do Estado em torno do Império como engendramentos de determinações históricas mais sutis.
Como coloca Gladys, o ‘Partido brasileiro’ “seria um ‘saco de gatos’, cujas disputas pelo poder começaram a ocorrer antes mesmo da Emancipação ser vista como separação política total dos reinos” (RIBEIRO, p.40, 2002). Da mesma forma fluida se constituiria o ‘Partido português’: não se colocava um antagonismo claro entre portugueses no Brasil e brasileiros, afinal “todos fariam parte de uma única família” (Idem, p.31). O que se coloca é que “Se o local de nascimento dava a diferença, atenuada pelo parentesco e pelos laços religiosos, isto não era tudo. As ligações econômicas eram os mais importantes ‘vínculos’. Elas cimentavam a união de interesses entre os ‘compatriotas’, que deveriam ser representados nas Cortes” (Idem, p.32). Ou seja, não só não havia um consenso em torno do que seria o ‘brasileiro’ e o ‘português’, afinal todos seriam filhos da pátria lusa, como não também não haveria uma união de interesses dos portugueses em Portugal e portugueses no Brasil, uma vez que os negociantes portugueses haviam enraizado seus negócios na colônia, enquanto que os comerciantes do Porto e de Lisboa haviam sido demasiadamente prejudicados pelos tratados de 1808 e 1810.
Certamente as proposições de Gladys parecem ir de encontro ao cerne do argumento de Maria Odila. No entanto, na nota 59 de seu texto, ela diz:
“Não quero minimizar a importância dos tratados para o desenvolvimento do comércio brasileiro na época. Só não quero que a emancipação [...] seja confundida com o desejo de separação total. Maria Odila Silva Dias é uma das historiadoras que dá grande ênfase a 1808, embora esvazie 1822 como o marco para o início da consolidação da unidade nacional, desvincule a data do quadro de luta da Colônia versus Metrópole e retire o caráter nacionalista do movimento” (RIBEIRO, p.116-117, 2002)
Este excerto é bastante revelador para a compreensão da discussão historiográfica que há como pano de fundo da análise de Gladys sobre o processo de Independência. É certo que a autora não nega a importância da vinda da Corte a terras brasileiras: Gladys tem razão quando afirma que não havia um plano maquiavelicamente traçado desde 1808 e que, portanto – retomando a argumentação de Sérgio Buarque e Maria Odila – as rédeas da Independência não foram tomadas por uma classe que tinha interesses definidos – como propunha Caio Prado ao tratar das forças em embate. Ou seja, seria precipitado dizer que o ‘Partido português’, por estar remando contra a maré da História, estava desde o início fadado ao fracasso. A análise dos jornais e folhetos da época mostra que a Independência era coisa incerta mesmo depois de sete de setembro. Da mesma maneira, foi necessário um grande esforço político para criar uma noção de brasilidade em contraposição à ameaça portuguesa de reunião dos Reinos sob uma única Coroa. No entanto, com o intuito de refutar qualquer concepção teleológica da História e de posicionar a construção de identidades como fruto de um sistema de relações, a autora necessariamente acaba dando demasiada importância aos debates e discursos que aconteciam no ‘calor da hora’, esvaziando, assim, a noções de movimento e sujeitos históricos. Ao tentar dar historicidade à proposição de Eni Orlandi, que figura logo no início de seu texto, Gladys rejeita a idéia de que discursos produzem seus significados de acordo com suas contraposições internas. Todavia, ao abandonar as explicações de cunho estrutural e ao afirmar que os discursos moldam a realidade e são moldados por ela, a autora acaba tendo que reduzir o movimento de independência a um embate discursivo catalisado por acontecimentos políticos. Ou seja: o movimento constitucional do Porto lançaria a fagulha necessária para que os debates em torno das condições de colônia e metrópole se iniciassem. Como resultado destes embates, a separação total entre Brasil e Portugal teria se dado no ‘calor da hora’ e seria necessário que se reunissem esforços para “convencer o Povo e a plebe de que [o Grito do Ipiranga] havia sido bem pensado e teria sido fruto da justiça e da razão”. Ou seja, se por um lado Gladys nega que haveria um plano conscientemente traçado para a Independência desde 1808, por outro ela admite que, dada a separação, seria necessário esboçar ativamente a noção de uma Nação que ali nascia.
De certa forma, a análise de Caio Prado, ao se focar no entrelaçamento dos movimentos econômicos e políticos, tem a vantagem de evidenciar que a maneira como os homens se engajam e se posicionam ativamente frente às estruturas sociais cria condições de ação que são mais ou menos determinadas por esse engajamento. Isto é, entendendo o discurso também como uma forma de se posicionar criticamente frente ao mundo, só se pode pensá-lo conjuntamente à posição social ocupada pelo criador do discurso frente às estruturas sociais (que certamente estão além do campo de visão do indivíduo). Se o movimento histórico é extremamente marcado na análise de Caio Prado, é porque ele está sobremaneira preocupado com o olhar sobre as estruturas: de certa forma, não é um absurdo dizer que a Independência já havia acontecido em 1808, uma vez que o enraizamento da Corte no Brasil criaria condições que dificilmente poderiam sofrer um retrocesso. No entanto, torna-se necessário o cuidado maior com os eventos conjunturais para que se torne evidente para o historiador que as pessoas, em suas vivências cotidianas, estão demasiadamente imersas em seus mundos sociais e que, por isso, seus olhares e sua capacidade de ação são necessariamente posicionados – desta forma evita-se que se criem ‘super sujeitos históricos’, incorporados na concepção de classe de Caio Prado, por exemplo. Ora, entretanto, o historiador deve dar um passo além: seu trabalho não deve ser apenas o de se tornar mais um sujeito imerso nos discursos da época – operando de tal maneira que os eventos políticos como a Independência acabem se envolvendo numa neblina analítica da qual é difícil de se desfazer. Não basta, portanto, uma visão ampla sobre a produção discursiva de um período: o historiador necessariamente precisa observar a emergência de tais discursos frente a movimentos históricos mais amplos que o campo de visão dos interpretadores locais. O abismo que se coloca entre o discurso e a prática social, no caso da análise de Gladys, acaba transformando o movimento histórico em algo alheio aos sujeitos: afinal, a eles só é reservada a interpretação polissêmica dos fatos. Sendo assim, no caso da Independência, notar-se-á que ela pode ter sido feita no ‘calor da hora’ para aqueles sujeitos imersos em seus mundos sociais, mas não aos olhos do historiador.
domingo, 28 de setembro de 2008
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário