quarta-feira, 19 de setembro de 2007

A suavidade que se segue

Acordei-me de um sono muito estranho, um sono de... séculos. O quarto estava bem mais escuro do que o normal e, estranhamente, não ouvia qualquer barulho: nem mesmo o habitual cri-cri-car dos grilos ou o movimento sofrível do pequeno ventilador. A casa estava tomada por um silêncio absoluto, e tal silêncio conspirava contra a minha vontade de tomar consciência do meu corpo e levantar em busca de um copo de água. Parecia-me que a dimensão dos sonhos ainda me empurrava violentamente contra a cama, como mil exércitos pressionando-me para dentro de mim.

Eram as horas mortas da madrugada, certamente. Horas para as quais a ciência e a lógica fechavam as pálpebras, com medo dos mistérios que podiam fitar-lhe os olhos. Um olhar que, por conter tanta verdade, assustaria qualquer um. Acredito que todos nós já nos deparamos com tais horas durante o nosso sono, mas – espertamente – voltamos à condição segura do inconsciente e do ego. Eu gostaria muito que não tivesse visto o que vi, que tivesse virado para o lado e voltado a dormir. No entanto, a sede era demais, uma sede extra-humana.

Como num salto a um abismo, meus membros voltaram a si e senti-me restituído. Um alívio. Uma falsa sensação de controle sobre as horas mortas. Lentamente, coloquei os dois pés no chão, ao mesmo tempo. Esfreguei o rosto: meus olhos ardiam a secura. Finalmente os abri conscientemente, e o que vi foi o silêncio preenchendo o quarto como um éter – fluido e, por isso, amedrontador. Levantei-me e, lutando contra a escuridão, andei lentamente, apalpando os objetos em volta. Procurava um interruptor como alguém que procura uma resposta, desesperadamente. Achá-lo foi um alívio; ver que não funcionava jogou-me novamente na condição da aflição tateadora. Saí do quarto.

No corredor, as janelas traziam a luz pálida da lua. “Devem ser quatro da manhã”, pensei. Olhei para o meu relógio de pulso e ele não estava lá. Tentei recorrer à memória: “eu tirei o relógio antes de dormir?”. Não me lembrava. Em verdade, não me lembrava de ter ido dormir. Fatos desconexos me vieram à mente, não sabia dizer se havia sido um sonho. Entretanto, uma memória que me escapava era a de ter-me deitado naquela noite. Parecia que eu dormia havia séculos...

Ao final do corredor, havia a porta para a cozinha à direita e a entrada para uma sala ampla à esquerda. Andei cuidadosamente, tentando não chamar a atenção para os meus passos. Tarefa difícil: a cada um deles, a madeira no chão estalava e rangia, quebrando o silêncio (ou, quem sabe, corroborando com ele). No final do corredor, virei à direita. Novamente tentei acender a luz, mas nada funcionava: “Estamos sem energia”. Encontrar o velho filtro de barro repleto de água foi como abraçar um irmão: senti-me em casa novamente. Aquela água descia a minha garganta completando-me existencialmente. Senti minhas formas completarem-se novamente. Sentia com clareza meus braços, meus dedos, meu pé - descalço tocando o chão frio. Sentia-me inteiro.

Havia perdido o sono. Na verdade, nunca o tive. No entanto, minha cabeça doía e meus olhos ardiam o cansaço. Meu corpo não. Dirigi-me à sala, onde havia uma grande janela com vista para o quintal. Olhei através dela e vi formas estranhas no jardim: talvez fosse o efeito da escassa luz, não sei. Mas algo parecia estranho: ele estava maior, mais comprido. Ao fundo, a mangueira e a amoreira pareciam menores, como eram há muitos anos. Aquela sensação do silêncio como um éter se multiplicava e se intensificava no quintal. Não se tratava mais de um éter fino e meticuloso. O silêncio agora se estendia pesadamente sobre o chão, parecendo uma forte neblina. Mas não havia nada ali; certamente não. Como uma criança, abri a janela e sentei no parapeito, olhando de volta para a sala. A mesa de jantar, o piano, o grande relógio ao lado da cristaleira... Tudo em seu exato lugar. Quando percorria o espaço com os olhos, meu peito apertou-se subitamente: “O espelho!”.

O espelho! Ao lado da cristaleira, o espelho! Havia um grande e grave pano branco cobrindo-o. A neblina silenciosa, que antes tomava conta do quintal, entrava pela janela que eu havia aberto. Sentia-a nas costas, passando por entre meus dedos que se apoiavam no parapeito. Sentia seu frescor gélido de horas mortas da madrugada. A neblina se tornara tão pesada... Parecendo um grande rio passando por mim, um rio de águas densas, longe da nascente.

O espelho... Levantei-me e andei ao seu encontro. Meu coração gritava uma angústia tão forte, novamente não me sentia mais inteiro. Sentia que meu corpo se espalhava por toda a sala. Esta, por sua vez, tomava uma dimensão universal e transcendente. Sentia minha mão direita tremendo ao estendê-la em direção ao pano. Fechei os olhos e puxei-o, revelando a face espelhada. Nesse instante, percebi a verdade sobre as horas mortas da madrugada. Percebi que não se tratava de um tempo como o conhecemos: tratava-se de um instante apenas. Um instante no qual o silêncio era o espaço e a consciência era a sua terceira dimensão. A consciência.

Olhei-me no espelho. Certamente o que vi não é algo que se vê normalmente quando se encara o próprio reflexo. A imagem tinha vida, lutava contra mim. Senti a mesma sensação de quando se luta para acordar: tomada de consciência. Com muita força, consegui dirigir meu olhar para os meus próprios olhos... Assim como quando se vira um microfone para uma caixa de som, a imagem amplificou-se numa microfonia absurdamente alta. Percebi, então, que meu corpo se ampliava em tal microfonia, formando uma rede branca em volta de mim; uma rede que aumentava de tamanho, concentrava seus nós e depois se expandia novamente.

Lembranças, lembranças, lembranças... A angústia, que antes era predominante, dava lugar, se desfazia, sintetizava-se na suavidade que, de alguma forma, preenchia de maneira muito mais concreta os espaços. Ela não entrava sorrateiramente por entre as frestas. Ela tinha a dimensão eterna e infinitamente acolhedora de uma terna recordação: o poder explicativo das metáforas, o rico saber de uma seqüência de acordes que o acompanhou por toda a vida. O piano. A madeira: cheiro e cores. A cristaleira. A mangueira. O quintal, amplo como o mundo. Uma cena de filme, uma risada. Era essa a dimensão da consciência, que transcendia o tempo e o espaço da sala. Transcendia o silêncio, era mais do que ele.

A imagem no espelho se perdeu, assim como o meu próprio corpo. Restou-me a consciência, que não mais tentava abarcar o mundo, mas sim era parte dele.

3 comentários:

PESCADOR CRISTÃO disse...

ae dom mto bacana seu texto...!!! aliás seu blog.. quero fazer um também!!! é foda?
abs uehuehuehe

Diane Muste disse...

auto-explicativo meu post não?

por que o seu conto então se extende por linhas a fio a relatar pequenas mortes "fatídicas"?

são as frestras...

e é também a vida.

Arthur S. disse...
Este comentário foi removido pelo autor.