domingo, 15 de setembro de 2013

Era só uma sombra larga





Queria ler aquele poema
do Drummond
da mesa cheia
mesa vazia.

Queria saber
que seus olhos cinzas
veem.

Queria
uma lembrança cintilante
Cajuru nos anos 30

um caco de vidro
garrafas de leite
o guincho de um porco
e a tal mangueira
tão impossível
no quintal
que já nem é nosso.

Queria molhar
seus pés de menina
descalços no terraço
prendados na praça.

Auscultar sua música
um traço borrado no
horizonte
entre a luz
e a sombra.

Lamber suas pálpebras
pesadas
nas madrugadas longas.

Queria um chão familiar
chão batido sobre outro
mais ancestral
sobre este
um outro mundo
pra lá de lá
onde chove sal e o sol
não fala português.

Queria te chamar de tu
te chamar de tu
quando as ilações
da varanda
grassam no você.

Adentrar sua dor
aquela dor
tão bem inscrita
rajada em cinza.

Queria ser poema
aquele do Drummond
aquele
esquecido, sabe?
Pra sempre resto
folha na gaveta
uma imagem:
a mesa cheia
agora vazia.

terça-feira, 10 de setembro de 2013

Carne





De repente
em setembro
o sabiá laranjeira
canta.

De repente é janeiro
e são 6:00
e dois coqueiros
esbarram o sol nascente (imaginário).

Tão logo é junho
e te espero
o ranger das tábuas
de madeira.

Sinto abril
metonímia de maio
e março sem graça
fevereiro tão quente.

De repente é setembro.

Mas aqui é setembro
(é setembro)
e já foi.

É setembro
e já não sei
se amanhã
pulsará atemporal
esta tal de carne. 

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Pequeno luto




Ela acaricia
o cachorro hesitante
em seu braço.

Ele jura que o perfume
é lavanda barata
“menos de 10 reais”.

Ela lança o torso
arquejando um gancho
com seios pendentes.

Ele é vértice
de um ângulo reto
uma geometria que pulsa.

Se olham.

Se olham
pupila com pupila.

Se olham
se equilibra seco o olhar.

Se olham
dez mil anos depois
no fundo do mar
como aqueles corpos
petrificados em Pompéia
morrendo a caminho da porta.

terça-feira, 3 de setembro de 2013

Navalha




Sobre o pesar das botas
sobre o fremir das coxas
condenso um saber

- sei que quero habitar esta latitude.

Sei que quero
morrer tua navalha
que sobe das botas à virilha
em linha contínua

- branca, longa, contínua -

sei que quero
tua navalha
tiritando meus pêlos.

E lá onde a linha foge
condenso um olhar:
silencioso, ele silencia.

A linha foge
escapa de baixo para cima
feixe que foge às botas às virilhas
escapa como luz
e onde ele estanca
sei que silencio

ali
condenso uma perplexidade
ali, o frêmito para
ali vivo obtuso
no agudíssimo ângulo
do teu olhar.